Memória – Augusto Pontes: "Vida vento vela"

Pelas mãos do amigo e taxista, Augusto Pontes, morto há cinco anos, volta às ruas de Fortaleza.

O endereço oficial ficava na rua Carolina Sucupira, mas era comum a viagem começar não muito longe dali, na Ildefonso Albano, na casa com varanda de azulejos verdes. Num dos bancos de ferro antigos que ainda permanecem como cinco anos atrás, ele se colocava com as anotações à mão enquanto esperava o amigo e taxista Carlos Augusto Lino. Só entrava, porém, depois de presos os dois cachorros: um poodle e um cocker spaniel. “Tem dente!”, alertava o gênio de Augusto Pontes, morto em 15 de maio de 2009.

Era assim que o publicitário, compositor, frasista e ex-secretário estadual da Cultura do Ceará começava as tardes tomando o cafezinho servido por vó Bahia, mãe de criação de Conceição, o grande amor de uma vida e dona da casa que já não era de Augusto.

Apesar de separados desde o começo dos anos 1990, aquele endereço continuava abrigando o coração do boêmio, um eterno apaixonado pela segunda mulher, que o ajudou a criar as filhas do primeiro casamento, Natércia e Isadora, e lhe deu outras duas, Clarissa e Cecília.

“Chegou o Carlim!”, de repente gritava, após ouvir a buzina, despedindo-se para entrar no táxi e seguir aos destinos de sempre. Havia o dia dos bancos, o do médico, o dos palácios de governo, mas a praxe mesmo eram os bares.

Às vezes o Flórida Bar, às vezes o Bar do Papai, noutras o Country Club, o Bar do Ciço, o Alicate. Eram muitos, e em todos Augusto tinha lugar cativo. “Lá vem o dorminhoooco”, anunciavam os garçons, acostumados a vê-lo beber uma cervejinha, comer e dormir por alguns minutos, embora sempre de ouvidos atentos.

Quem conta é Carlos, o “companheiro” de Augusto pelas andanças que ele não fazia no próprio carro por dirigir mal. O taxista de 54 anos, que rodou com ele por pelo menos 16, tornou-se um amigo depois de levá-lo para casa uma vez e mais outra e mais outra. “Ele gostou da minha corrida, fiquei levando todo dia, e a gente virou amigo. Só brigava por causa de trânsito”, diz sobre o passageiro difícil, que não suportava uma parada brusca e reclamava de qualquer alteração no percurso.

“Vamos supor: ele queria ir pela (avenida) Aguanambi, mas tava engarrafada. Aí eu trocava o trajeto. Ele dizia: ‘Companheiro, por que você tá indo por aqui?’ E eu: porque é melhor. ‘Me prove que é melhor!’, respondia. Aí eu me calava, e ele: ‘Pronto, ficou com raiva já! Companheiro, eu sou seu amigo, não sou passageiro, não!”, narra o taxista, com saudade nos olhos.

Histórias pela cidade

As recordações trazem um Augusto alegre, cheio de tiradas e trocadilhos. Era chamado de “professor”, considerado gênio pelos pares da mesa de bar. Quando a lei permitia, Carlos conta que costumava acompanhar Augusto nuns goles em pleno expediente. Assim foi sendo criada a intimidade entre ele e o homem dos discursos e indicações políticas, colaborador de clássicos da música cearense, como “Mucuripe”, e outras tantas sobre as quais ele não requeria os créditos.

“Era um homem muito simples”, resume Carlos, deixando para contar da generosidade de Augusto numa das histórias conservadas na memória. Um dia o taxista pediu R$ 100 emprestados a Augusto. “Companheiro, tenho não, hoje eu tô pra baixo”, disse, antes de conduzir a corrida. Foram numa loja de decorações na avenida Washington Soares, depois noutra na Santos Dumont, pararam para almoçar, e Augusto esticando o tempo e o percurso num sábado de bandeira dois. “No meio do caminho, ele olhou o taxímetro e disse: ‘Olha aí, companheiro, já tá dando R$ 140, você não me pediu R$ 100? Pronto, resolvi seu problema!’”.

Cinco anos após a morte de Augusto, situações como essa permanecem frescas na recordação de Carlos. “Parece que foi ontem a última corrida”, diz ele, resgatando o bordão que sempre ouvia nas despedidas. “Força e coragem, companheiro. Vai dar certo!”, repete até hoje.

Depoimentos

“Conheci o Augusto Pontes no final dos anos 1960 através do parceiro de publicidade José Domingos. Cruzávamos os corredores da velha TV Ceará associada. Eu cenógrafo, ele produtor do programa ‘Gente que a gente gosta’, guru do pessoal do Ceará. Nossa amizade amiudou, na verdade, nos tempos de boemia iracemal do Opção, Estoril, Cais Bar e Rostro Hermoso, já nos 1980. No final de sua vida, era assíduo frequentador do Clube do Bode, diarista do Flórida Bar. Aí, já maduros, fazíamos mais retrospectiva do que projetos para o futuro. Era uma pessoa difícil, mas extraordinária, à frente de todos nós. Irônico, sarcástico, era um pensador genial. Avis rara, voou deixando saudades e fazendo muita falta. A cultura do Ceará deve muito a esta figura.” – Audifax Rios, artista plástico

“O Augusto Pontes era um cara maravilhoso. Foi uma perda enorme não só para nós, os amigos, mas para Fortaleza. Quando ele queria ler, pensar, ele sentava numa cadeirinha bem ali (no Flórida Bar). Depois, quando queria fazer confusão, vinha pra essa mesa aqui com a turma. Ele vinha pra cá quase todos os dias. A mesa lá de cima está muito mais interessante que essa daqui”, diz o amigo, referindo-se também a tantos outros que morreram, antes e depois de Augusto. – Narcélio dos Anjos, assessor e amigo de Flórida Bar

“Meu pai era um moleque, uma pessoa muito observadora, muito engraçada. Era uma pessoa que matava você de rir, que gostava de fazer as pessoas rirem.” – Natércia Pontes, escritora e filha de Augusto Pontes

Saiba mais

Augusto Pontes nasceu em 30 de dezembro de 1935, em Fortaleza. Foi publicitário, compositor, secretário estadual da Cultura do Estado na gestão Ciro Gomes e um conhecido boêmio e intelectual da capital cearense. Era considerado o guru do chamado Pessoal do Ceará, como ficaram conhecidos os músicos Rodger Rogério, Ednardo, Teti, Fagner, Amelinha e Belchior no começo da década de 1970. Do primeiro casamento, com Cristina Fernandes, teve as filhas Natércia e Isadora. Da união com Conceição Tavares, com quem se casou depois, vieram Clarissa e Cecília. Conhecido pelas tiradas cheias de humor, animava as mesas dos bares que frequentava com frases e anedotas que contava. Morreu em 15 de maio de 2009, vítima de dengue hemorrágica, aos 74 anos.

Fonte: O Povo