Carta do Vasco da Gama em defesa dos negros completa 90 anos

Há 90 anos, no dia 07 de abril de 1924, o Vasco dava um importante passo na luta contra o racismo no futebol.

Por Thiago Cassis, no Portal da UJS

Seleção do Vasco em 1924 - Reprodução

O clube, que vinha da segunda divisão, treinava seus atletas de uma forma diferente dos adversários daquela época. O clube cruz-maltino preparava seus jogadores durante toda a semana, ou seja, os jogadores se dedicavam apenas ao futebol, com treinamentos físicos e alimentação especial. Isso era uma novidade em tempos de amadorismo no futebol carioca.

Dessa forma o Vasco conquistou o Campeonato Carioca da primeira divisão de 1923. Título em seu primeiro ano na elite.

Com o sucesso daquele clube popular que aceitava todos, sem se importar com cor, etnia ou classe social, e que vinha da segunda divisão, um grupo formado por América, Botafogo, Flamengo e Fluminense deixa a Liga Metropoliana de Desportos Terrestres (LMDT) e funda a AMEA (Associação Metropolitana de Esportes Atléticos). Naquela nova associação os jogadores poderiam ser inscritos apenas se comprovassem que tinham “empregos bons” ou que estavam estudando. A medida era uma clara tentativa de conter o Vasco e seus métodos que estavam tornando a equipe da colônia portuguesa quase imbatível.

No contexto das novas regras propostas pela recém criada associação, o Vasco teria que afastar doze jogadores, pois não se enquadravam nos requisitos necessários para participarem do campeonato.

O então presidente do Vasco, Dr. José Augusto Prestes, escreveu a seguinte carta na ocasião:


"Rio de Janeiro, 7 de abril de 1924

Ofício no. 261

Exmo. Sr. Arnaldo Guinle, M.D. presidente da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos.

As resoluções divulgadas hoje pela imprensa, tomadas em reunião de ontem pelos altos poderes da Associação a que V. Exa. tão dignamente preside, colocam o Club de Regatas Vasco da Gama em tal situação de inferioridade que absolutamente não pode ser justificada nem pela deficiência do nosso campo, nem pela simplicidade da nossa sede, nem pela condição modesta de grande número dos nossos associados.

Os privilégios concedidos aos cinco clubes fundadores da AMEA e a forma como será exercido o direito de discussão e voto, e as futuras classificações, obriga-nos a lavrar o nosso protesto contra as citadas resoluções.

Quanto a condição de eliminarmos doze (12) jogadores das nossas equipes, resolve por unanimidade a diretoria do Club de Regatas Vasco da Gama, não a dever aceitar, por não se conformar com o processo por que foi feita a investigação das posições sociais desses nossos con-sócios, investigações levadas a um tribunal onde não tiveram nem representação nem defesa.

Estamos certos que V. Exa. será o primeiro a reconhecer que seria um ato pouco digno da nossa parte sacrificar ao desejo de filiar-se a AMEA alguns dos que lutaram para que tivéssemos entre outras vitórias a do Campeonato de Futebol da Cidade do Rio de Janeiro de 1923.

São esses doze jogadores jovens quase todos brasileiros no começo de sua carreira, e o ato público que os pode macular nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu nem sob o pavilhão que eles com tanta galhardia cobriram de glórias.

Nestes termos, sentimos ter de comunicar a V. Exa. que desistimos de fazer parte da AMEA.

Queira V. Exa. aceitar os protestos de consideração e estima de quem tem a honra de se subscrever de V. Exa. Att. Obrigado.

Dr. José Augusto Prestes

Presidente"

Dessa forma o Vasco da Gama pedia sua exclusão da nova associação por não concordar em excluir seus atletas de origem mais humilde e de cor negra. O clube permaneceu na antiga liga ao lado de outros clubes que também não conseguiram atender as exigências dos clubes de elite, entre eles o Bonsucesso e o Villa Isabel. O Vasco conquistou mais uma vez o título, mas dessa vez sem a presença dos outros grandes clubes cariocas.

Em 1925 um acordo entre a equipe cruz-maltina e a nova associação, AMEA, trazia de volta o Vasco ao campeonato disputado pelos grandes e o clube com seus jogadores negros, mulatos e pobres tornava aquele gesto de resistência um divisor de águas na questão do preconceito racial dentro do nosso futebol.