Campanha busca recursos para documentário sobre a ditadura

A história que Ana Castro e Gabriel Mitani querem contar parece ficção, mas infelizmente não é. Eles estão produzindo o documentário Coratio, que irá mostrar o trabalho feito por advogados entre 1979 e 1985 para salvar documentos que provam a prática de tortura durante a ditadura (1964-85). Nesta semana, a dupla lançou uma campanha de arrecadação para terminar o filme e mostrar que a violência cuja memória o projeto Brasil: Nunca Mais quis preservar ainda é praticada nos dias de hoje.

Documentário sobre a Ditadura Militar - Reprodução

Em pleno regime autoritário, advogados retiraram dos arquivos judiciais processos levados aos tribunais castrenses, uma operação que garantiu a primeira comprovação de violação de direitos humanos a partir de fontes oficiais. “O uso da tortura não cessou. Você tem o Amarildo, mais de 6 mil pessoas desapareceram no ano passado do Rio, muitas delas pelas mãos de policiais que deveriam nos proteger. Então esse modus operandi da PM continua. Antes eram subversivos, universitários ou agricultores mais politizados, agora é na periferia, a população jovem. Pessoas que têm menos voz. Mas a forma de operar é a mesma”, afirma Ana.

O documentário pretende contar a história de um grupo de advogados que, em 1979, com o privilégio de ter acesso aos processos de seus clientes, percebeu que aquele material poderia ser destruído com o processo de redemocratização que se almejava próximo – mas que só se oficializou em 1985 – e decidiu fazer cópias deles. “Já se sabia que os militares brasileiros eram muito disciplinados e adoravam documentar o que faziam. E os advogados começaram a ficar com medo de que tudo aquilo fosse destruído com a redemocratização, o que era comum em ditaduras. No Estado Novo [na era Getúlio Vargas], se via quartéis em chamas”, recorda Ana.

Dom Paulo simboliza o valor da resistência e da esperança

Mas, naquela época, fazer cópias não era fácil e barato. E eles procuraram o cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, e o reverendo presbiteriano James Wright para ajudá-los. Com o apoio dos dois, uma campanha de arrecadação sem revelar seu real objetivo conseguiu, estima-se, US$ 250 mil. O dinheiro enviado pelo Conselho Mundial de Igrejas (CMI), protestante, geralmente chegava ao Brasil trazido sob as roupas de religiosos ou por pessoas com passaporte diplomático.

Com os recursos, os participantes do projeto compraram máquinas copiadoras e contrataram pessoas para fazer o serviço. “Eles acharam que iriam conseguir copiar 10% dos processos, mas em cinco anos conseguiram xerocar todos os 710 processos que estavam na Justiça Militar”, explica Ana.

Finda essa parte, o grupo organizou a documentação e, em 1985, lançou o livro Brasil: Nunca Mais, que compila alguns dados. À época, o trabalho foi assinado por dom Paulo, uma maneira de resguardar a identidade e evitar represálias contra os participantes. A íntegra do trabalho foi doada à Universidade de Campinas (Unicamp) e permaneceu guardada durante mais de duas décadas, até que, em 2011, o Ministério Público Federal e entidades da sociedade civil firmaram um convênio para a digitalização do material. “Era praticamente a primeira Comissão da Verdade. Há nomes de torturadores, médicos que faziam atestados de óbito falsos, detalhes sobre torturas, nomes de grupos de esquerda perseguidos”, afirma a jornalista.

“Muitas pessoas que fizeram processos de anistia usaram esses documentos. Eles eram muito importantes porque antes era a palavra dos torturados contra a dos torturadores. Foram os primeiros documentos abertos, sem pedir permissão para ninguém. Até hoje, se briga muito porque não se tem acesso à documentação da Aeronáutica, da Marinha.”

Em pouco tempo, o livro se tornou o mais vendido, mesmo tendo sido lançado sem estardalhaços e ainda sob o temor de represálias. Ana, que faz doutorado a respeito do assunto, percebeu que poucas pessoas conheciam essa história e, por isso, em junho do ano passado, em meio às manifestações que balançaram o país, teve a ideia do documentário.

“A gente começou a ver o tipo de ação da polícia, o tipo de criminalização dos movimentos sociais, o tipo de desmerecimento em parte da mídia e notar que a história estava se repetindo”, afirma. Por isso, o documentário não ficará só na história e deve ouvir pessoas que lutam, hoje, por democracia plena e justiça.

“A história é linda. Mas a gente achou que tem que trazer para hoje também. E mostrar o que isso tem a ver com a gente. Tem tudo a ver. Se a gente não discutir, isso vai se perpetuar eternamente”, afirma. “Um dos nossos entrevistados disse que a gente chegou à democracia sem passar pela Revolução Francesa. Não mudou a mentalidade da população.”

Em nove meses, os jornalistas entrevistaram dez pessoas e devem ouvir mais 15 até setembro. Os idealizadores querem entregar a história para o público no ano que vem. “Estávamos fazendo por nossa conta, mas agora acabou o dinheiro. Queremos fazer uma coisa profissional, para as pessoas verem mesmo, uma coisa legal. E para isso a gente precisa de equipamentos melhores de áudio, trabalhar na finalização. E por isso resolvermos fazer o financiamento coletivo”, explica.

A dupla está usando o site Catarse  e precisa arrecadar R$ 20 mil até o dia 11 de abril. Caso falte um centavo, a campanha é considerada malsucedida e, o dinheiro, devolvido a quem contribuiu. É possível colaborar com valores entre R$ 25 e R$ 1.000. A contrapartida é a inclusão dos doadores nos créditos do filme, além de brindes.

Fonte: Rede Brasil Atual