Na Argentina, museu resgata verdades sobre a Ditadura Militar

O visitante estará parado lendo uma explicação e algumas luzes prontamente demarcarão um retângulo vermelho no chão. O retângulo de uma cela, como o lugar que cada sequestrado ocupava na Escola de Mecânica da Armada (ESMA). Esse lugar será, neste ano, um dos cenários disponíveis no novo espaço da memória inaugurado onde foi o primeiro cassino de oficiais da ESMA, e depois o núcleo do campo de concentração na última ditadura argentina (1976-1983).

Escola da Mecânica Armada, Argentina

A curadora do novo espaço é Alejandra Naftal, sequestrada aos 17 anos e sobrevivente do campo El Vesubio. Ela estudou museologia. Durante o kirchnerismo, trabalhou por seis anos com documentação no Ministério da Defesa. O co-curador é Hernán Bisman, responsável por questões visuais e de desenho – fundamentais, visto que o projeto é itinerante e não deve alterar nada do edifício.

Naftal conta que escolheram o cassino dos oficiais porque foi “o lugar de alojamento dos presos e o epicentro da mecânica do prédio da ESMA”. E acrescenta sobre o próprio campo de concentração, como se estivesse tudo dito: “E a ESMA é tudo”.

Haverá um cuidado com o rigor? “Nós nos baseamos em documentos, fontes judiciais, acadêmicas, artísticas, jornalísticas e audiovisuais e também no testemunho de vítimas e de familiares”, diz a curadora. “Esses testemunhos são os únicos porque os oficiais nunca falaram. Não contaram a verdade. O que os visitantes escutarão são as vozes dos familiares e dos sobreviventes nos julgamentos”.

Ao redor do mundo, durante os últimos 30 anos, floresceram muitos centros dedicados ao exercício da memória. Os campos de Dachau e Auschwitz, por exemplo. Ou o de Buchenwald, que Jorge Semprún descreveu tantas vezes e onde os diretores do memorial quiseram mostrar como a sociedade alemã sabia que havia um campo a apenas 15 minutos de Weimar. E também o memorial do desembarque na Normandia, França, onde uma sala provoca com a seguinte pergunta: “França, um milhão de resistentes ou um milhão de colaboracionistas?”.

Para Naftal, os lugares para preservação da memória “tem sim que ser diferentes de um artigo, de um livro ou de um filme, porque são os lugares da verdade ‘autorizada’, que para as pessoas é 'a' verdade”, analisa. “É discutível porque é a verdade, não? Mas, para nós, existe a tenacidade de respaldar o que sabemos com fontes documentais. O que usamos são os testemunhos diante da Justiça. O julgamento das Juntas em 1985 e os diferentes julgamentos da causa ESMA dos últimos anos.”

Respondendo sobre a memória, Alejandra Naftal esclarece primeiro que “hoje há um Estado com convicção sobre essa problemática, porque leva adiante os julgamentos e porque transcorreu tempo suficiente, o que permite articular as relações entre história e memória”. E define: “A memória é um músculo muito elástico e seleciona o que lembrar, o que esquecer e como recordar”. Para ela, “é tão elástica que cria ferramentas novas a cada momento”.

Fonte: Carta Maior