“A Grande Beleza” Nostalgia romana

Filme do cineasta italiano Paolo Sorrentino traça um perfil da Roma atual com personagens em decadência que remetem ao passado glorioso da ex-cidade estado

O cinema, às vezes, capta com sensibilidade o ocaso de uma época, com acentuado grau de pessimismo. O cineasta italiano Paolo Sorrentino (“Consequências do Amor) o faz neste “A Grande Beleza”. Através de variada palheta de cores, belos movimentos câmera (travellings), cenários opulentos, emblemáticos personagens, ele enovela sucessivos entrechos que fazem o espectador transitar pelo Império Romano, a Renascença e a Roma atual. Principalmente na abertura do filme quando demarca épocas através do teatro, ópera, música e dança. É um primor de síntese e elipses.

O filme ainda é pontuado por figuras exóticas, pitorescas, disfuncionais, introduzidas com humor em off pelo escritor Jep Gambardella (Toni Servillo). Ele próprio, aos 65 anos, vive da glória de seu único romance, “O Aparelho Humano”, escrito há 50 anos. Este e seu trabalho numa revista semanal sustentam sua boa vida em festas regadas a champanhe, ao lado de socialites entrada nos anos, intelectuais frustrados, ricos galanteadores e nobres decadentes. Numa incessante repetição que lhes rouba o senso do real.

Mesmo que este frenesi noturno o mantenha em destaque, o clima nestes ambientes é do fim de um ciclo, cujos vestígios são de decadência moral, ética, política, econômica e de classe. Os personagens transitam por palacetes, praças, ruas, monumentos que refletem o apogeu de Roma (fundada no século VIII a.C) com seus afrescos, painéis, pinturas e esculturas renascentistas. As conversas com seus amigos remetem às glórias do passado e o presente é cheio de percalços e contradições, agravados pela crise financeira de 2008.

As constantes festas e o agitar incessante refletem a fuga da realidade atual. O PIB da Itália, terceira economia da União Européia foi de US$ 1, 98 trilhão de dólares, em 2012, com uma dívida de 126,1% do PIB, desemprego de 12,7%, chegando a 41,60% para os jovens, segundo o site Trading Economics. Não à toa, Jep e seus amigos boas-vidas não querem que as festas que entram pela noite terminem se não acaba em pesadelo.

Presente não honra o passado

Este tom nostálgico também pontua a conversa de Jep com a amiga Stefania (Sabrina Ferrilli). Comunista, ela fala de sua entrega ao partido, as tarefas que ainda executa, dividindo-se entre a militância, a família e as festas. Jep, que nutre uma paixão não correspondida por ela, desfaz seu apego à causa, perante os demais, mostrando que nada daquilo reflete o que ela é realmente. É constrangedor para ambos, porém se enquadra no que um dia eles foram. Se há um passado glorioso, de luta, o presente o exige mais ainda; dadas às novas exigências postas pela crise político-econômica italiana.

O reverso de Stefania é o poeta Romano (Carlo Verdone), que vive de recitais, sem nada escrever, e das festas. Aos poucos, ele se dá conta de que a Roma para a qual se mudou na juventude está em crise. Inexiste razão para permanecer em constante ebulição. Seu recital derradeiro bem o reflete: havia apenas uns gatos pingados, desinteressados ou alheios ao papel da poesia na cultura romana. A “Eneida” de Vírgílio(70 a.C/19 a.C) talvez não seja mais referência para eles. Entregaram-se ao hedonismo e a tecno-music.

No entanto, a cidade ainda se alimenta de suas crenças e superstições, configuradas por Sorrentino no Cardeal (Aldo Ralli), cheio de cacoetes, e a mística Irmã Maria (Giusi Merli), de apregoados poderes de “santa”. Ela mesma uma figura etérea, almejando a santidade. Jep, como se em sua derradeira entrega ao ritual cristão, oferece-lhe uma recepção, mas ela, frágil, prefere o sacrifício. A sequência em que ela sobe os sucessivos degraus, arrastando-se em penitência, demonstra sua entrega e a capacidade de Sorrentino de captar a persistência da entrega cristã italiana.

Olhar de Sorretino é nostálgico

Sorrentino ao percorrer ambientes e se deter nestes personagens registra com nostalgia a glória da outrora “Cidade Estado”, hoje maculada pelas estripulias sexuais, políticas e financeiras do ex-premiê Silvio Berlusconi, e não só ele. Resta, no entanto, a grande beleza da cidade, a arquitetura renascentista, os traçados das ruas, as praças com suas fontes, os personagens que emergem efusivos em festas e sofisticados trajes de alta alfaiataria. Decadentes, mas animados, como Jep transitando pelos luxuosos ambientes, como se dissesse: “Ainda não acabou, temos uma herança a preservar”.

Mas é cedo para as visualizações otimistas de Dadina (Giovanna Vignoli), editora da revista onde trabalha Jep, ao dizer que tudo se acerta. O futuro de Roma e, portanto da Itália, permanece nublado. Mesmo com estas construções, Sorrentino passeia pelas nostálgicas e elegíacas referências de Federico Fellini (1920/1993) de “A Doce Vida” (1959) e “Roma” (1972). As impressões de um e outro servem para comparar os diferentes momentos históricos de Roma/Itália e o que dela restou neste Terceiro Milênio.

A Grande Beleza”. (“La Grande Bellezza”). Drama. Itália, França. 2013. 142 minutos. Montagem: Cristiano Travaglioli. Fotografia: Luca Bigazzi. Roteiro: Paolo Sorrentino, Umberto Contarello. Direção: Paolo Sorrentino. Elenco: Toni Servillo, Carlo Verdone, Sabrina Ferrilli, Galatea Ranzi, Giovanna Vignoli.

(*) Globo de Ouro 2013, de Filme Estrangeiro.