Coco Manto: Os indigenados da Bolívia

Como na Europa de hoje, os Indignados, os com bronca por sua situação de párias na moderna sociedade capitalista, na Bolívia estão os indigenados que marcham pelos terrenos da honra e da rebelião, os que levam sua condição étnica na pele, no grito e na vitória.

Por Coco Manto*, no Diálogos do Sul

Os indigenados, os que fazemos confluir a identidade boliviana na pluralidade étnica que agora se reabilita histórica, social e geograficamente no país.

Na Bolívia sempre houve a indignação como valor enquistado na origem. O protesto e a resistência tiveram início no mesmo dia em que uns homens barbados se tornaram donos e senhores de outros seres humanos, a título de nada, ou de ter desembarcado de outro mundo.

“Não fala, não ouça, não veja!”, bradou colérico o inca Atahuallpa ao jogar fora o livro da Bíblia que o padre Luque lhe entregara jurando, o tradutor Felipillo no meio, que era a palavra e a voz de deus – deus de quem?

Atahualpa foi executado por Francisco Pizarro em 1533. Painel de Alonzo Chappel

Atahuallpa foi o primeiro indígena indignado, indigenado. E a primeira grande matança colonial nesse sul de América ocorreu nessa mesma tarde de 13 de novembro de 1532, em Cajamarca, sob invocação de Santiago Apóstolo, fetiche da guerra católica.

A raiva diante da prata

A conquista foi sangrenta e de extermínio. Contudo há que saber que os povos originários da Bolívia se rebelaram com força e dignidade, nos limites de sua inércia e assombro. Sua resistência começou em 1548, ano em que os espanhóis descobriram e se apropriaram da maior montanha de prata do Novo Mundo, em Potosí.

Desde aí datam os protestos dos originários contra o atropelo, o saque, a exploração física e a supressão de liberdades e direitos humanos. Ali começou a luta pelos recursos naturais. Não foram em vão ou para nada as horrendas mortes dos irmãos Katari, em Chayanta, ou de Túpaj Katari, em Peñas, altiplano de La Paz.

Túpac Katari e Bartolina

Embora os cronistas novo-hispânicos não contem tudo, os mitayos (meeiros) submetidos à escravidão construíam ao preço de suas vidas e de suas raivas, os socavones (tuneis subterrâneos) das minas com a única máquina de suas mãos, maquipuras.

Sob protesto faziam os postos para extrair o argento e esses mesmos buracos na rocha serviam depois de tumba para guardar seus ossos de tão curta vida.

O Súmaj Orcko – o cerro grande, em quéchua – mantém ainda hoje a forma cônica apesar de estar vazio por dentro, porque se sustenta com os milhões de ossos humanos cruzados no ar subterrâneo da montanha durante os 300 anos que durou a exploração humana.

Por que conhecemos a cor da ira indígena não é crível admitir que os chayantakas, sicuyas, laymis, charcas, jucumanis e demais autoridades da Nação Charca tivessem permanecido calados e quietos diante da desmesurada violência do sistema da mitta, o mísero salario que lhes davam para morrer.

O quéchua é verbo, não substantivo

As marchas e protestos dos quéchua são cada vez mais intensos.

Por que não teríamos que deduzir que a palavra quéchua não é o nome original dessa língua, mas sim a expressão de protesto, queixa e denúncia dos índios do Tawantinsuyu? Por que os filólogos não deveriam aceitar de uma vez que o fonema “q’echua” é, na realidade, um verbo do vocabulário inca que significa tirar, usurpar, despojar?

“Q’echúan” (mi tiraram), “q’echuasan” (me estão usurpando), “q’echanña” (já me despojaram…), esses eram os gritos diante do ouvidor ou do padre pela brutal atropelo que os conquistadores exerciam sobre suas vidas e propriedades, ávidos pela riqueza fácil.

Esse ouvidor ou o missionário – nauseante cronista que pregava sobre um deus justo sabendo que seus acólitos eram assassinos e assaltantes – devem ter enviado à Metrópole informes com um gracioso fragmento: “Todos os dias a cantilena do quechúan. Em todas as partes quechúa, em todos os tons quechúa e quechúa… o que fazer com esses quechúas…?”

Estudiosos da comunicação oral desses povos, como o canadense boliviano Marcelo Grondin, asseguram hoje que o nome original dessa língua era “runaj simin” (o que o homem fala) e no Perú o “rimac” (anunciação da palavra). E por isso hoje “rimaway” (fale-me), “rimaricuna” (falemos), etc. Não em vão o rio Rímac que cruza a cidade de Lima é chamado pelas gentes de Falador.

Aqui então, os indigenados bolivianos. Os que protestam pelo saqueio de seus recursos naturais, mas também os que já não se deixam enlamear nem humilhar com insultos racistas, mesmo que os donos dos grandes meios de comunicação continuem dando grande espaço a seus massacradores de palavra e imagem nesses iníquos veículos.

A vida mudou de rumo

Na Bolívia a vida não é fácil para os que, por exemplo, chamavam “lacras” aos ayoreos em Santa Cruz. Não só a lei os persegue ao longo da larga avenida da impunidade, mas também a gente indigenada, Cristã ou comunista, que crê e luta pela dignidade humana.

Embora os racistas se retratem diante do juiz, inclusive vertendo lagriminhas de falso arrependimento no cárcere, e ou ensaiem desculpas para evitar a prisão e o desprezo cidadão, há um país crescente de indigenados.

A grande jornalista argentina Stella Calloni ouviu durante uma entrevista Evo Morales dizer: “são demasiadas as coisas contra as que temos que lutar, o racismo e a pobreza. Mas são maiores as dívidas a pagar com nossos povos tão marginalizados, insultados, escravizados. Para isso recorremos ao diálogo para avançar nas soluções. Se há algo que corrigir, o fazemos sem sentir o que se perde ou se ganha. Esse é um conceito de competências de um mundo que deixamos pra trás. Demos grandes passos graças a consciência e dignidade de nossos povos…”

Tempo e razão dos que estamos indegenados. Que somos, vá lá.

*Jorge Mancilla, o poeta Coco Manta, boliviano, foi embaixador do governo de Evo Morales no México, é colaborador de Diálogos do Sul.