Após Uruguai, mais países reconhecem fracasso da guerra às drogas

Enquanto o Uruguai se converte no primeiro país do mundo a legalizar a produção, venda e cultivo pessoal de maconha, na Organização das Nações Unidas (ONU) se fala cada vez mais em mudar a estratégia contra as drogas. Um rascunho interno do fórum mundial, que vazou no começo deste mês, revela intensos desacordos entre os países membros sobre a política da ONU em matéria de drogas.

Por Samuel Oakford, da IPS/Envolverde

Dependentes em um subúrbio de Daca, em Bangladesh |Foto Alam Kiron Map/IPS

O documento, divulgado pelo jornal britânico The Guardian e obtido pela IPS, contém mais de cem recomendações específicas para os países, muitas delas contrárias ao status quo sobre proibição e erradicação de drogas. O texto afirma que cresce o descontentamento entre os governos e nos corredores das sedes da ONU em Nova York e Viena, onde o documento vazou do Escritório das Nações Unidas Contra a Droga e o Crime (UNODC).

A Noruega, por exemplo, exorta os Estados a fazerem “perguntas relacionadas com a despenalização” e a realizarem “uma avaliação crítica do enfoque representado pela guerra contra as drogas”. O que “não é algo particularmente novo”, disse Kasia Malinowska-Sempruch, diretora do Programa Global de Política de Drogas da Open Society. “O novo é que estamos falando sobre isso. Creio que há uma espécie de fachada na ONU que diz: ‘somos uma grande família feliz’, mas essa não tem sido a realidade por anos”, apontou à IPS.

Em 1993, o México afirmou em uma carta à Assembleia Geral da ONU que, devido ao fato de “o consumo ser a força motriz da produção e do tráfico de drogas, a redução da demanda se converte na solução radical – ainda que de longo prazo – do problema”. Apesar de iniciativas políticas de redução de danos na América Latina e na Europa, as reformas dentro da ONU se veem freadas por dogmas de meados do século 20 e por serem regateadas constantemente entre seus membros.

Os preços das drogas caem e elas ficam mais puras a cada ano, enquanto os governos continuam gastando US$ 100 bilhões anuais em medidas de prevenção e castigo. A ONU estima que o tráfico de drogas cresceu para mais de US$ 350 bilhões por ano, e que até 2050 o número de consumidores aumentará 25%. No documento, a Suíça nota “com preocupação que a aplicação de leis repressivas pode obrigar os consumidores a se afastarem dos serviços de saúde pública em busca de ambientes ocultos”. Ali, “os riscos de overdose, infecções com hepatite C, HIV (vírus causador da aids) e outras doenças de transmissão sanguínea são muito altos”, alerta a Suíça.

Esse país apoiou no ano passado a proposta da Organização dos Estados Americanos (OEA) de realizar fóruns alternativos para discutir as políticas internacionais de drogas. A OEA denuncia abertamente o dano que os narcotraficantes – atraídos pelo voraz consumo na América do Norte e pelos elevados ganhos – causam em grande parte da América Latina. Em setembro, o presidente da Guatemala, Otto Pérez Molina, disse, na Assembleia Geral da ONU, que “a guerra contra as drogas não gerou os resultados esperados, e não podemos continuar fazendo o mesmo e esperar resultados diferentes”.

Entre as recomendações do rascunho que vazou, o Equador pede “esforços especiais para conseguir uma significativa redução da demanda”, e que as medidas de prevenção e castigo incluam “pleno respeito à soberania e integridade territorial dos Estados, ao princípio de não interferência nos assuntos internos dos países e nos direitos humanos”. “Os países estão sofrendo”, disse à IPS o representante da Guatemala nas Nações Unidas, Gert Rosenthal, “mas a eles se diz que devem fortalecer a proibição”.

Esse tipo de documento é reelaborado a portas fechadas, para ser convertido em recomendações unificadas de políticas. Nesse caso se procura apresentar uma declaração de consenso na Revisão de Alto Nível que a Comissão de Narcóticos realizará em março de 2014 em Viena, na Áustria. Esse encontro vai preparar o cenário para a Sessão Especial da Assembleia Geral da ONU de 2016, quando se espera que os Estados Unidos tracem uma nova política a respeito de drogas para a próxima década.

O processo para obter consenso, que poderia dar um enorme controle aos já poderosos países favoráveis à proibição, como Rússia e Estados Unidos, sofre duras críticas, explicou Tom Blickiman, pesquisador do Transnational Institute, em Amsterdã, na Holanda. “Se um país bloqueia as reformas, podem ter êxito. Os países estão cansados, não deveria ser dessa maneira”, pontuou à IPS.

Nas negociações, a União Europeia fala em nome de todos seus membros, homogeneizando opiniões, disse Malinowska-Sempruch. “A voz de Portugal e de outros países mais progressistas é sufocada porque fazem parte de um bloco maior”, acrescentou. Um porta-voz da UNODC disse à IPS que não faria comentários sobre rascunhos de documentos nem sobre o processo de consenso.

Desde que a Convenção Única de 1961 sobre Narcóticos, fortemente influenciada pelos Estados Unidos, preparou o caminho para a moderna guerra contra as drogas, os países se esforçam para cumprir suas obrigações legais. Até hoje, a maioria ainda enfrenta o narcotráfico com os parâmetros desse pacto e da Convenção de 1971 sobre Substâncias Psicotrópicas. Os acordos exigiram dos países total proibição dos estupefacientes.

Segundo a convenção de 1961, certas plantas e seus derivados são considerados ilegais prima facie (à primeira vista). Mas, segundo a de 1971, que se aplica a drogas psicoativas e farmacêuticas produzidas em sua maioria no Ocidente, a proibição só cabe quando se demonstra o perigo da droga. Essa disparidade significa que, aos olhos do direito internacional, quem consome folha de coca nos Andes é tão digno de castigo quanto os consumidores de Oxycontin e metanfetaminas nos Estados Unidos.

“Algumas drogas foram endemoniadas e é difícil fazer o relógio retroceder”, argumentou Blickman. Nos Estados Unidos, a Lei Contra o Abuso de Drogas, de 1986, introduziu penas mínimas para os consumidores que garantiram à nascente indústria de prisões privadas um fluxo constante de detentos. E uma convenção da ONU de 1988, exigindo que os países signatários penalizem a posse de drogas, converteu os viciados em uma nova classe de criminosos internacionais.

Para países como o Uruguai, que no dia 10 aprovou um revolucionário regime de produção, venda e autocultivo legal de maconha, driblar os acordos internacionais pode ser um delicado jogo geopolítico. A nova lei uruguaia coloca todo o sistema sob controle do Estado e autoriza a venda de até 40 gramas por mês a cada usuário, que será inscrito em um registro. Contudo, a Junta Internacional de Fiscalização de Estupefacientes (Jife), encarregada de supervisionar o cumprimento das convenções, alertou que a lei uruguaia “violaria a Convenção Única de 1961 sobre Estupefacientes”.

“Basta olhar para Suíça ou Alemanha, que têm locais onde se pode aplicar heroína, ou a Holanda com seus cafés, ou Portugal ou Uruguai, para notar que há países que pensam que deve haver políticas diferentes”, disse Malinowska-Sempruch. No entanto, enquanto esses países se destacam nas notícias (Portugal eliminou as penas para consumidores em 2001), nações pequenas temem desagradar Estados Unidos e Rússia, eternos doadores e membros com poder de veto no Conselho de Segurança da ONU.

Segundo a lei norte-americana, o Departamento de Estado deve publicar anualmente um relatório avaliando se os beneficiários da ajuda cumpriram as “metas e os objetivos” do acordo de 1988. “Nem todos os países se interessam por esse problema a ponto de se tornarem inimigos, porque sabem que necessitarão desses votos para o que realmente lhes interessa”, afirmou Malinowska-Sempruch. A maioria dos recursos da UNODC vem de Estados membros, que podem condicionar suas contribuições para “fundos com propósitos especiais”.

O governo suíço, que começou a oferecer tratamento com heroína para viciados em 2008, se retratou em uma entrevista coletiva dizendo que o documento que vazou é parte de uma sessão de “intercâmbio de ideias” e que “de forma alguma significa apoio ou tentativa de mudar as três convenções da ONU sobre drogas”. Embora a sessão de 2016 possa marcar um ponto de inflexão, para muitos a reforma ocorrerá nos fatos. Como os tratados internacionais existem simplesmente porque os países os cumprem, ignorá-los pode ser mais efetivo do que qualquer outra medida.

“Há margem na Convenção”, apontou Blickman. Se os países deslizam nele, a “Jife não poderá fazer muito além de proibir a entrada de certas drogas (farmacêuticas) para o país”, acrescentou. E se essa tendência continuar, a ignorada Jife pode acabar convertida em uma raridade de biblioteca. Em seu informe anual de 2010, a empresa de prisões privadas Corrections Corporation of America alertou seus investidores que qualquer mudança nas leis “sobre drogas e substâncias controladas ou sobre imigração ilegal pode afetar o número de pessoas presas, condenadas e sentenciadas, e, portanto, reduzir a demanda por instalações correcionais”.