Índios ocupam terra em SP para retomar modo de vida tradicional

Há pouco mais de um mês, índios guaranis ocuparam o terreno de uma antiga aldeia no sul da cidade de São Paulo. A terra, chamada por eles de Tekoa Eucalipto, foi uma aldeia nas décadas de 1970 e 1980. Abandonada há dez anos, está hoje tomada por eucaliptos e mata nativa. Os indígenas pedem a demarcação de uma terra indígena maior na região, distante quarenta quilômetros do centro da cidade, no bairro de Parelheiros. 


Instalação provisória dos índios na Tekoa Eucalipto/Piero Locatelli

Eles alegam que a aldeia onde vivem não permite a manutenção do seu modo de vida tradicional. Lá, não conseguem, por exemplo, plantar, caçar ou ficar em contato com a natureza. “Temos os problemas da saúde física: por não ter o alimento tradicional, você fica naturalmente doente. E aí você também tem a doença espiritual, que é a vivência que você perde. E fica doente para os dois lados,” diz Jerá, guarani de 31 anos. “Alguns adultos ficam com muito tempo ocioso e não tem o que fazer, então começam a se envolver com bebida alcoólica. Isso traz uma situação muito grave, as pessoas ficam doentes da cabeça, e a família desestruturada por completo.”

Jerá vive na terra indígena Guarani da Barragem (conhecida como Tendondé Porã), um das duas demarcadas em 1987 na região. A área foi estabelecida, segundo a ideia vigente até então, de que era necessário delimitar somente a terra ocupada pelos índios, e não todo o terreno necessária para sua sobrevivência.

Ele conta que os problemas da área tem piorado nos últimos vinte e cinco anos. “A aldeia tinha poucas famílias quando começou, então tinha espaço para todo mundo plantar. Também dava para caçar e era tudo muito mais equilibrado,”diz Jerá. A terra ficou mais saturada com a migração de índios expulsos de outras terras, vindos principalmente do Paraná, e o crescimento das famílias. Hoje, mais de mil índios moram no local.

Na aldeia, conta Jerá, não há mais espaço para plantar, e algumas famílias chegam a passar fome. “Hoje em dia todo mundo vai pescar e caçar nos mercados da cidade porque não tem na própria aldeia. Mas para pegar alimentação do mercado, precisa de dinheiro,” lamenta ela. Sem conseguir tirar sua subsistência da natureza, a maior parte dos índios vive com o programa renda mínima, sistema de distribuição mantido pela prefeitura. Uma minoria recebe salários dentro da aldeia, em trabalhos nas escolas e no posto de saúde, e através da confecção de artesanato.

“Aqui já é nosso, independente de assinar papel ou não”

Os índios tomaram a terra que estava abandonada há mais de dez anos para minimizar os problemas causados descritos por Jerá. “Para a demarcação sair, falta uma assinatura que o pessoal não faz lá nos poderes públicos. Mas aqui já é nosso, independente de assinar papel ou não, a gente está aqui. E nós vamos ficar aqui,” diz Claudio Pires, de 30 anos.

A terra nova, conta Pires, permitiria a plantação de variedades próprias de milho, mandioca, batata doce e amendoim. Eles também estão usando os eucaliptos do local para a construção de casas, que começam a sair do chão. Ao mesmo tempo, dizem que buscam preservam a mata nativa da área de 56 hectares.

Os relatos dos índios mostram que a terra, até então abandonada, era usada para atividades ilegais, como o desmonte de carros e uso de drogas. Por duas vezes, eles foram hostilizados por pessoas não identificadas que apareceram com armas no local. “A gente não sabe quem foi. Não falaram nada, eles só chegaram quebrando as coisas e jogando as ferramentas no rio,” diz Pires.

A reportagem tentou contato com os proprietários da terra, mas não obteve retorno. Os índios contam que tem mantido um diálogo bom com eles, que não tem tido objeções à ocupação.

Processo de demarcação começou em 2002

O terreno ocupado faz parte de uma terra indígena maior, cujo processo começou em 2002. A Funai (Fundação Nacional do Índio) determinou a demarcação da terra em 2012, três anos depois dos estudos no local acabarem. A área tem mais de 15 mil hectares, cerca de quinhentas vezes maior que o atual limite demarcado, passando também pelos municípios de São Bernardo do Campo, São Vicente e Mongaguá. O novo processo de demarcação leva em conta as mudanças da Constituição de 1988. O artigo 231 dela não prevê somente a limitação das áreas efetivamente ocupadas por eles, mas também das “imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

O processo retornou à Funai, devido a alegação do Ministério da Justiça que haviam “problemas técnicos” no processo, e ainda aguarda procedimento do órgão. O Ministério da Justiça não especificou os problemas, e também não disse se tem uma posição ou previsão sobre a demarcação da terra. A Funai também não especificou quando o processo deve ser enviado de volta ao Ministério.

A demarcação da terra, dizem os índios, ajudaria não somente os guaranis da região, mas outros que vivem situação semelhante. Na zona norte da cidade, na menor aldeia indígena do país, guaranis sofrem ainda mais com a falta de espaço.

Desde que tomaram uma ação direta para demandar seus direitos, os índios contam que a sua auto-estima melhorou. “Em um mês, desde a retomada dessa terra, muitas coisas boas já aconteceram. Temos o envolvimento e a felicidade de muitas pessoas da aldeia em relação a ter uma terra nova,” diz Jerá. “Ninguém fica sentado e vendo o tempo passar, todo mundo lá está sempre animado em fazer as coisas acontecerem.”

Fonte: Carta Capital