Raul Gudarzi: Exército, Irmandade Muçulmana e a crise no Egito

O portal iraniano HispanTV publicou um artigo do jornalista e cientista político Raul Gudarzi, nesta semana, sobre o atual contexto no Egito, o papel do Exército e o da Irmandade Muçulmana no país, sobretudo após a destituição do presidente Mohammed Mursi, em julho. Gudarzi vive em Teerã, capital persa, e escreve regularmente para a HispanTV, alinhada com as orientações da Revolução Islâmica (1979), no Irã, que derrubou um regime monárquico aliado aos EUA. Leia a íntegra do artigo.

Egito protestos - AP Photo

Os problemas da Irmandade Muçulmana não cessam no cenário político do Egito. Após a revolução de janeiro de 2011, que provocou a derrubada do ditador Hosni Mubarak, este movimento conseguiu ascender às altas esferas políticas; entretanto, agora assiste ao seu afastamento do poder no país africano.

A destituição de Mohammed Mursi pelos militares afetou negativamente o futuro político deste grupo e assentou o terreno para a sua decadência.

Ao ser eliminada da cena política e social do Egito, será que a Irmandade Muçulmana recorrerá a medidas violentas? Que opções tem ante a atuação do Exército? Poderá o país recuperar a tranquilidade após a eliminação da Irmandade Muçulmana?

A revolução egípcia de 25 de janeiro de 2011 foi produzida em condições de total insatisfação popular com a ditadura de Mubarak, a notável desigualdade social e uma crescente taxa de corrupção, desemprego e pobreza da população.

A presença dos militares no cenário político durante três décadas consecutivas e a repressão dos opositores motivaram greves indefinidas pelas ruas do país, especialmente [com as manifestações] na praça Tahrir, no Cairo, cujo lema era “pão e liberdade”.

Neste sentido, o partido da Irmandade Muçulmana, fundado em 1928 por Hassan Al-Bana, na cidade de Alexandria, ao assistir à contínua repressão exercida pelos agentes da ordem contra os manifestantes, somou-se às vozes opositoras e organizou as suas forças políticas para se converter em um fator independente e eficaz na transferência do poder.

A falta de uma oposição forte e o apoio obrigatório dos generais de Mubarak à Irmandade Muçulmana assentou o terreno para essa transição, mediante as eleições. As presidenciais do Egito foram celebradas com um Parlamento dissolvido, devido às discrepâncias entre os movimentos islâmicos, os liberais e o Exército; por isso, resultou extremamente necessário que alguém assumisse o poder com o apoio do povo e, dessa forma, aliviasse a situação do país.

As eleições, que não contaram com uma assistência massiva do povo egípcio (quase 50% de participação das urnas) tiveram um vencedor: Mohammed Mursi. A escassa margem de vantagem foi alcançada: 51,7% dos votos válidos, que significou para o mandatário contar com o apoio de quase 25% da população do país, pouco mais de 13 milhões de pessoas, o que reduz a qualquer pessoa as possibilidades de governar uma nação.

Com o passar do tempo, se aprofundaram as contradições e discrepâncias entre os militares e o novo Executivo. O presidente eleito, ao invés de responder às necessidades reais dos cidadãos, reduzir a desigualdade social e lutar para erradicar a pobreza da população, ignorou uma ampla parte das vozes opositoras dos liberais e outros grupos nacionais e dedicou-se a governar o país contando unicamente com os membros do seu próprio partido, o mesmo método adotado por Hosni Mubarak.

Ao mesmo tempo, enquanto crescia a insatisfação da maioria dos egípcios pelas medidas do governo, este concentrou todos os seus esforços para aumentar o poder do seu partido e conceder à Irmandade Muçulmana diferentes cargos e postos chave na administração, decisões que propiciaram um imenso distanciamento entre ele e a população.

Dadas as características da sociedade egípcia, o triunfo de uma revolução e uma transição sociopolítica na estrutura de poder do país requerem muito tempo e um equilíbrio entre as forças.

Ficou muito evidente que a convivência pacífica entre o Exército e a Irmandade Muçulmana encontrava-se dominada por interesses de alguns países ocidentais e árabes, e por isso a situação era insustentável. Mursi, logo que assumiu o poder, esforçou-se por reduzir a influência da junta militar, um grupo que, por mais de 60 anos, manteve-se na elite do poder político e econômico do país.

Se [Mursi] pôde, aparentemente, reduzir a influência [desse grupo], todos sabiam que a junta militar nunca se retiraria do cenário político, mas se manteria à espera da oportunidade propícia para se vingar do mandatário, exatamente o que aconteceu no passado mês de julho.

O conjunto de medidas adotadas por Mursi no país empenharam a imagem do seu partido e provocaram a perda de confiança do povo.

O fracasso do movimento na melhora da segurança e da economia do país criou as condições para que o Exército decidisse derrubar o novo governo, pelo que, através de um golpe de Estado brando, apoiado pelos opositores, derrubou Mursi e formou um governo de transição, liderado por Adli Mansur.

A prisão dos líderes da Irmandade Muçulmana e o fechamento dos jornais partidários deste movimiento dificultaram a situação do grupo. Além disso, o governo egípcio anunciou a sua decisão de eliminar a Irmandade do registro de Associações Civis e Organizações Não Governamentais (ONGs), logo após um tribunal emitir uma ordem judicial contra todas as atividades e congelar os bens do partido, algo que também havia acontecido com [o movimento] na época do ex-presidente Gamal Abdel Nasser.

Tendo em conta o assassinato do terceiro presidente egípcio, Anwar el-Sadat, nas mãos do movimento Jihad Islâmica, ramificação radical da Irmandade Muçulmana, devido à sua proximidade com o regime de Israel, e por ter assinado o Acordo de Paz de Campo David [com os israelenses, em 1978], não é impossível, em absoluto, que este partido seja novamente testemunha desse tipo de acontecimento.

Não obstante, é preciso mencionar que, enquanto os principais membros e líderes desse partido reiteram suas medidas pacíficas para chegar a um acordo que beneficie todas as partes, o ramo extremista da Irmandade Muçulmana insiste em se vingar dos seus opositores através de atos violentos.

Ainda que o evento do passado três de julho tenha sido algo inédito na história egípcia, e o governo Mursi tenha sido derrocado por seus erros, tanto no âmbito interno quanto no externo, a pesar de ter sido eleito por voto popular, mostra claramente que esse país acostumou-se com a presença das ditaduras.

Neste sentido, instaurar a democracia e uma sociedade civil não é mais do que uma utopia, os militares são os que decidem o futuro do país e adequam a estrutura política a seu favor, características inerentes a uma verdadeira ditadura.

Apesar do aumento das tensões, a Irmandade Muçulmana ainda contam com uma organização e formação políticas adequadas, e seu distanciamento do extremismo pode augurar a sua volta ao cenário político do Egito.

Ao mesmo tempo, é preciso destacar que a decisão do Exército de fazer uso da violência e da repressão brutal contra a Irmandade Muçulmana também pode assentar o terreno para uma guerra civil e, por fim, o massacre de mais civis.

Por essa razão, a única opção ante essa situação está, por um lado, na decisão de Mursi e seus seguidores deixarem de confrontar-se com o governo interino e com o Exército, para analisar e corrigir seus pontos débeis e regressar com maior força ao cenário político do país; e por outro lado, o Exército deve respeitar aos seguidores do partido, que conta com mais de 80 anos de fundação, e abandonar os atos hostis contra ele, para que a Irmandade Muçulmana possa seguir com as suas atividades políticas.

Fonte: HispanTV

Tradução de Moara Crivelente, da redação do Vermelho