Morre o jornalista e escritor comunista francês Henri Alleg 

Morreu nesta quarta-feira (17), em Paris, aos 91 anos (completaria 92 no próximo dia 20), o jornalista, escritor, militante comunista, autor de várias obras, entre elas o célebre “A Questão” (1958) que denunciava a tortura durante a guerra da Argélia.

Por Rosa Moussaoui, em “Humanité”


Desde o tempo do jornal “Alger républicain”, do qual se tornou diretor em 1951, o jornalista comunista fez da pluma sua arma de combate por uma Argélia liberta do racismo e da opressão colonialista. Seu livro “A Questão” contribuiu de maneira decisiva para revelar a prática da tortura pelo exército francês.

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“Enfim Argel. Um cais inundado de sol, que mostra o boulevard em frente ao mar”. Quando o jovem Harry Salem desembarca pela primeira vez em Argel, em outubro de 1939, foi este esplendor mítico da Cidade branca a primeira coisa que ele abraçou. Quando o fascismo lançava seus tentáculos sobre a velha Europa e preparava as armas do desastre, o jovem, que sonhava com novos horizontes, teria podido viajar para Nova York ou para a América Latina. O acaso e algumas peripécias o levaram ao Norte da África, ao país que era então um “departemento francês”.

Sociedade de apartheid

Para o jovem parisiense, filho de alfaiate, nascido em Londres em uma família de judeus russos e poloneses em fuga dos pogroms, a descoberta da Argélia foi algo perturbador. Naquele outro mundo, seu sonho argelino toma corpo imediatamente. Ele se liga com os argelinos, meninos maltrapilhos e com amigos do albergue da juventude onde se alojava, entre os quais Mustafá Kateb. Amizades consideradas contrárias à natureza, nessa sociedade de apartheid. Instintivamente, o jovem recusa a fronteira invisível que separa os dois mundos, o dos europeus, cidadãos franceses, e o dos nativos, tornados estrangeiros em seu próprio país. Quando os vichystas se apossam de Argel, Henri, já comunista de coração, adere à Juventude Comunista clandestina, antes de se incorporar ao Partido Comunista Argelino (PCA). Foi lá, na euforia da Libertação, que seu caminho se cruza com o de uma “simpatizante”, Gilberte Serfaty. Ela se tornará uma ardente militante e, para ele, a companheira de toda a vida.

Racismo e opressão colonial

Na Argélia, naquele momento, chegou-se a uma situação sem retorno, com os massacres de maio de 1945 em Sétif e Guelma, prólogo de uma guerra que explodiria nove anos mais tarde. Para Henri Alleg, a pluma se torna a arma de combate por uma Argélia liberta do racismo e da opressão colonialista. Em novembro de  1950, ele ingressa no jornal “Alger républicain”. O diário tinha sido fundado em 1938 por homens progressistas que se opunham ao colonialismo. Sem pôr em causa o dogma da Argélia francesa, o jornal testemunhava, antes da guerra, sob a pluma de Albert Camus e outros “liberais”, o sinistro destino reservado aos nativos. Quando Henri Alleg assume a direção do jornal, em 1951, os comunistas já tinham conquistado ali uma influência preponderante. A linha do jornal se torna mais resolutamente anticolonialista, solidária com as lutas operárias, favorável ao objetivo da independência. Era o único jornal que escapava ao monopólio da imprensa diária de propriedade dos grandes colonialistas.

Ao lado de Alleg, coisa inédita e impensável na época, um “nativo”, Boualem Khalfa, foi promovido ao posto de redator chefe. O engajamento do jornal irrita enormemente as autoridades, que o censuram e multiplicam as apreensões, sob os pretextos mais banais. Henri Alleg e sua equipe tiram desse encarniçamento repressivo um slogan : “O ‘Alger républicain’ diz a verdade, nada mais que a verdade, mas Alger républicain não pode dizer toda a verdade”. Alleg encoraja as plumas afiadas, como a do jovem Kateb Yacine, cujas análises políticas, de uma fineza e uma impertinência tola, subjugavam até os mais aguerridos da redação. Quando eclode a insurreição, em 1º de novembro de 1954, “Alger républicain” já estava desde há muito tempo na mira dos guardiões do templo colonial. O jornal foi proibido em 1955.

Clandestinidade e censura

Henri Alleg passa à clandestinidade. Regularmente, envia artigos ao jornal “Humanité”, proibido na Argélia, alvo, por seu turno, também de censura na França. Ele foi preso em 12 de junho de 1957, quando se dirigia à casa de seu amigo, o matemático Maurice Audin, preso na véspera pelos paraquedistas. Torturado até à morte, Audin não conseguiu sobreviver aos suplícios que lhe infligiram os bárbaros, sob as ordens de Massu e Bigeard.

Alleg escapou do inferno. Todos os suplícios, todos os nomes, todos os lugares, mesmo as palavras, ficaram para sempre gravados na sua memória. Ele decide tudo contar, se sobrevivesse, sobre o que se passava naquele prédio ocupado pelo órgão repressivo, em El Biar, onde “se suicidou” o advogado Ali Boumendjel. Seu testemunho transpunha os muros do campo de Lodi, depois da prisão de Barberousse, em minúsculos papéis dobrados. Seu advogado, Léo Matarasso, os entrega ao jornal “Humanité”. A edição de 30 de julho de 1957, que publica esse relato arrepiante, é apreendida.

Na primavera de 1958, Jérôme Lindon aceita publicar as denúncias nas edições de “Minuit”. O livro, prefaciado por Jean-Paul Sartre, é imediatamente proibido. Mas a censura provoca um efeito inverso ao esperado pelas autoridades. Duas semanas mais tarde, em Genebra, o editor Nils Andersson assume a responsabilidade pela difusão. “A Questão” atravessa a fronteira em malas e circula às escondidas na França. No total, 150 mil exemplares clandestinos do livro serão difundidos, contribuindo de maneira decisiva para revelar a prática da tortura. Três anos após sua prisão, Henri Alleg é condenado por “atentar contra a segurança externa do Estado”. Ele é penalizado com dez anos de prisão. Transferido à prisão de Rennes, consegue fugir, com a cumplicidade de Gilberte, durante uma internação hospitalar. Ajudado por militantes comunistas, ele segue para a Tchecoslováquia, onde permanece até a assinatura dos acordos de Évian.

Sonho argelino

Quando retorna à Argélia para supervisionar o relançamento de “Alger républicain”, as ameaças dos “irmãos” da Frente de Libertação Nacional (FLN), que se matavam pelo poder, ainda são veladas. Com Abdelhamid Benzine, Henri Alleg escapa por pouco de uns homens armados. A equipe se reconstitui. O apoio técnico da “Marseillaise” torna possível o reaparecimento do jornal, que assume como seu o slogan das mulheres da casbah, extenuadas pela guerra entre as facções da FLN : “Sebâa snin barakat !” (“Sete anos de guerra, já são suficientes!”). Mas estava claro o fosso entre a nova Argélia da FLN e o sonho argelino de Alleg e de seus camaradas. Ele evoluirá para um incomensurável abismo. Após o golpe de Estado de 1965, Alleg tem que fugir. Os comunistas são perseguidos. Em “Arbitraire”, um livro que testemunhava as torturas que lhe infligiam os homens da nascente ditadura, o dirigente comunista Bachir Hadj Ali conta que seus torturadores ameaçavam fazer de Alleg, refugiado em Paris, um Ben Barka argelino.

O combate de sua vida

Mas a Argélia ficou no coração do jornalista como o combate de sua vida. “Sou feliz e orgulhoso por ter participado do combate pela independência”, dizia-nos em março de 2012. Quando retornou à França, este homem discreto, erudito, de uma gentileza refinada, se incorporou à redação de “Humanité” como grande repórter e depois se tornou seu secretário-geral. “Exerci a profissão como militante comunista, animado por convicções”, gostava ele de repetir. “Foi para mim um engajamento no sentido mais forte do termo”, assinalava.

“Honra de nossa nação”

O secretário nacional do Partido Comunista Francês (PCF), Pierre Laurent, emitiu uma nota por ocasião do falecimento de Henri Alleg. “Para os comunistas e todo o povo francês e o argelino, isto causa imensa dor”.

“O nome de Henri Alleg permanecerá como sinônimo de verdade, coragem e justiça. Engajado pela paz, a independência e a democracia na Argélia, Henri foi torturado e preso, transferido a Rennes de onde se evadiu em 1961”, prossegue a nota do dirigente do PCF.

O dirigente comunista agrega que ao revelar as atrocidades cometidas pelo exército francês na Argélia, o autor de “A Questão” “permitiu que a sociedade francesa olhasse de frente a verdade do poder colonial que ela exercia na Argélia. A obra, traduzida em 28 línguas (inclusive em Português – nota da redação do Vermelho), foi, com justiça, considerada como o “J'accuse” de nosso tempo. Sua concepção da profissão de jornalista – alimentada por seu ideal – honra a nossa nação”.

Tradução da redação do Vermelho