América Latina reage contra imperialismo estadunidense 

O analista político Katu Arkonada reflete sobre o conflito diplomático desatado após as negativas dos países europeus, que fecharam seus espaços aéreos ao avião do presidente boliviano Evo Morales pela suspeita de que o ex-agente da CIA, Edward Snowden estivesse a bordo. Ele destaca os dois momentos distintos pelos quais atravessam, do ponto de vista geopolítico, os continentes europeu e latino-americano.

Por Juan Manuel Karg*, no Brasil de Fato

Segundo ele, a Europa passou a servir os interesses imperialistas dos Estados Unidos submetendo-se como um ator subalterno que recebe ordens. Já a América Latina viveria uma nova época, a da reafirmação do protagonismo de seus povos e e da construção de um território das liberdades. Katu Arkonada é graduado em Políticas Públicas, docente pesquisador na Universidad de la Cordillera de La Paz. Confira a entrevista.

Quais as primeiras repercussões após a chegada de Morales a La Paz, uma vez que houve muitas manifestações a favor dele durante as horas mais difíceis?
Katu Arkonada: Primeiro quero chamar a atenção para a rápida reação dos governos da América Latina, que viram neste atentado contra Evo Morales alguma coisa além de uma simples atitude neocolonial de alguns governos europeus. Identificaram rapidamente a mão dos EUA utilizando desta vez a Europa como o seu quintal, dentro desta nova estratégia imperialista de reacomodar o tabuleiro geopolítico a seu favor.

Em segundo lugar, é preciso considerar o trabalho e a solidariedade dos movimentos sociais e as forças de esquerda do continente. Chegaram de toda parte comunicados de indignação, rejeição e solidariedade com o companheiro presidente Evo Morales e o processo de mudanças boliviano, de movimentos sociais, redes, partidos políticos etc. Dez deputados do Parlamento Europeu, entre franceses, espanhóis e portugueses, assinaram uma carta de solidariedade e indignação “com uma Europa condescendente com EUA”. Houve comícios de apoio em Buenos Aires, Caracas e Cidade de México. Também é preciso destacar o manifesto assinado pela Rede de Intelectuais em Defesa da Humanidade, que em menos de 24 horas conseguiram mais de 800 adesões, dentre elas, as de Eduardo Galeano, Adolfo Pérez Esquivel, François Hourtart, Frei Betto, Atilio Borón, Isabel Rauber, Arturo Escobar, Theotonio dos Santos, Alfonso Sastre, Marta Harnecker e Michael Löwy.

Em terceiro lugar, ocorreu o encontro de vários presidentes da Unasul – União de Nações Sul-Americanas–, em Cochabamba, reforçando a união política e a consciência anti-imperialista entre os países do continente, e sintetizada na frase de Rafael Correa no Coliseu de Cochabamba junto aos movimentos sociais: “O que aconteceu com Evo, aconteceu com todo latino-americano digno”.

Circulou a informação de que os EUA enviaram à Bolívia, horas depois deste verdadeiro “atentado” por parte de Espanha, Itália e Portugal, a ordem de extradição de Snowden. Isso leva a crer que haviam coordenado as ações com os países europeus. Que pensa sobre esse tema?
Sim, na mesma terça-feira pela noite, enquanto Evo Morales permanecia retido numa salinha de um aeroporto austríaco, chegava uma nota verbal à chancelaria boliviana. Isto foi confirmado pelo próprio chanceler David Choquehuanca e demonstra que se tratava de uma manobra perfeitamente orquestrada e sincronizada.

Não tenho qualquer dúvida de que houve uma ordem da CIA, via embaixada dos EUA em cada país, para fechar o espaço aéreo de meia Europa e para obstaculizar a passagem do avião presidencial FAB-001, violando tratados internacionais como a Convenção de Viena e colocando em risco a própria vida do presidente, que teve que fazer um pouso de emergência na Áustria, país que, não por casualidade, é membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

Depois do pedido de asilo de Julian Assange ao Equador, e com Snowden pedindo possibilidades de asilo em países como Venezuela, Cuba, Bolívia e o próprio Equador – como se viu na lista difundida pelo Wikileaks – você acredita que América Latina, e em especial os países da Alba, se converteram em região de ajuda humanitária nesses tipos de casos? Por quê?
É claro que na América Latina está acontecendo uma mudança de época e a Europa vive uma crise estrutural. A Europa passou 500 anos impondo a outros povos o modelo político, econômico e cultural da modernidade e do capitalismo. Modelo que, por outra parte, não teria podido ser construído e posteriormente consolidado, sem a acumulação originária.

Hoje, Europa está absolutamente incapacitada para aprender, depois de tantos anos “ensinando”. A América Latina se levantou, recobrou sua dignidade e soberania, com processos de mudança que recuperam recursos naturais em benefício das maiorias.

Daí a crise europeia que atinge especialmente o sul da Europa, de uma Europa que pode construir seu Estado de bem-estar às custas da exploração dos povos, pessoas e recursos naturais do Sul. Uma vez que esse Sul está em pé e constrói um novo tabuleiro de relações geopolíticas, produz-se a crise de acumulação capitalista que estamos observando. É preciso ler nesse viés o ataque imperialista a Evo Morales e, por extensão, à Alba e os processos de integração. Mas, como lembramos nesses dias, já não é tempo de impérios e nem de colônias, é tempo de povos e de dignidade.

Com Evo Morales já na Bolívia, que podemos esperar do ponto de vista geopolítico nos próximos tempos? Que papel podem jogar os movimentos sociais?
Não se pode fazer uma leitura isolada dessa ação, e nem devíamos perder muito tempo em acusar os governos de França, Espanha, Itália e Portugal.

Penso que essa ação deve ser pensada no marco de uma contraofensiva dos EUA, que viram sua hegemonia abalada no tabuleiro geopolítico desde a vitória do comandante Chávez, em 1998, seguido pela de Lula no Brasil e assim por diante, com os outros presidentes de esquerda; a criação da Alba no final de 2005, ao que se soma o Tratado de Comércio dos Povos (TCP), a contribuição boliviana para a Alba. É nesse contexto que os EUA se rearmam politicamente por meio da Aliança do Pacífico como sucedâneo da Alca e aproveita o enorme vazio deixado pela morte de Chávez para contra-atacar.

Em setembro, vão fazer 40 anos do golpe de Estado contra Allende e o começo da implementação do neoliberalismo, e a CIA já não joga bombas sobre os palácios presidenciais, assassinando presidentes, propiciando golpes de Estado contra presidentes legítimos mas, neste caso, dá uma demonstração de força fechando o espaço aéreo de meia Europa para o avião do presidente Evo Morales.

Ante isto, necessitamos de leituras serenas, necessitamos ser conscientes da importância de não perder os processos de mudança, que com maiores ou menores contradições e limitações, avançam a favor das classes populares.

Necessitamos seguir aprofundando os processos de integração, não apenas desde os governos, mas também desde os movimentos sociais. Nesse sentido, é preciso saudar iniciativas como a recente 1ª Assembleia Continental de Movimentos Sociais para a Alba, que permite consolidar um horizonte pós-neoliberal que não sentimos vergonha de chamar socialista. Iniciativas como essa podem se converter em retaguardas estratégicas dos governos em determinadas conjunturas, ao mesmo tempo em que se convertem em vanguardas da luta que colocam no horizonte mais próximo a construção de um projeto político de integração continental.

Em todo caso, a batalha vai ser dura, as agressões por parte do imperialismo vão continuar, e precisamos da unidade de governos e movimentos sociais defendendo as conquistas que, desde a derrota do neoliberalismo, vêm se consolidando na região.

*Juan Manuel Karg é jornalista, texto publicado no jornal argentino Marcha