Reunião entre CNJ, índios e fazendeiros: conflito e negociação

Índios e ruralistas discutem demarcação de terras e violência em Mato Grosso do Sul

Reunião Terena CNJ Fazendeiros em MS

Hoje, em Campo Grande-MS, no Tribunal de Justiça (TJ-MS), foi realizada reunião extraordinária especialmente convocada para tratar do conflito ocorrido em Sidrolândia (60 quilômetros de Campo Grande), da qual resultou a morte de Oziel Gabriel, um dos indígenas que ocupavam as terras da fazenda Buriti, localizada nesse município, desde 15 de maio (veja histórico abaixo).

Intermediada pelo deputado estadual Pedro Kemp (PT) e pelo presidente do Tribunal de Justiça de MS, desembargador Joenildo de Souza Chaves, a reunião se deu entre o juiz Rodrigo Rigamonte, do CNJ, o procurador da República Emerson Kalif, lideranças das comunidades indígenas da região do Buriti (municípios de Anastácio e Dois Irmãos do Buriti) e representantes dos produtores rurais, nomeadamente Famasul (Federação da Agricultura e Pecuária do MS) e Acrissul (Associação dos Criadores de MS).

Lamento indígena

Abalados pela morte do companheiro Oziel, os indígenas foram os primeiros a se manifestar na reunião. O índio Alberto Terena, da Fazenda Buriti, chorou a “perda de um guerreiro, de um pai de família, isso é um marco para nós”. Emocionado, disse que teve o privilégio de ver os campos, as matas, os rios. “Meu filho não verá mais”, lamentou.

No entanto, sem se ater a questões sentimentais, remeteu à política e à economia: “O agronegócio tem falado mais alto. Sabemos de sua importância econômica, mas não é passando a perna no povo que vai resolver. A Assembleia Legislativa fez acordo, em Sidrolândia fizemos acordo, e quando a gente menos espera o acordo é quebrado. Não houve demarcação. Engana-se quem pensa que nossas terras foram demarcadas. Somos mais de cinco mil pessoas em apenas dois mil hectares. Como vocês pensam nos seus filhos, nós pensamos nos nossos, temos de criá-los, precisamos de território.”

A reação dos fazendeiros

O presidente da Famasul, Eduardo Riedel, iniciou sua fala lembrando a atuação da senadora Kátia Abreu (PSD-TO), presidenta da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), em seu pedido de suspensão das demarcações das terras indígenas. Ele garante que isso foi feito “não por achar que os senhores não tenham direito, mas para conter o abuso da FUNAI no dimensionamento dos territórios.” A manifestação esclarece, em grande parte, a origem e a base do conflito: quantidade, valor e dimensão das terras a serem negociadas e indenizadas.

O ruralista também lamenta a violência e a credita ao governo federal. Lembrando o assassinato de um fazendeiro pelos índios em conflito de terras, disse: “Está difícil segurar a nossa dor também. O Estado brasileiro está nos colocando um em frente do outro, em pé de guerra. Os produtores rurais foram chamados pelo Estado, vieram para produzir”.

Índios e não-índios

O cacique terena lembra que “índio é povo brasileiro, não somos problema para o país, o problema veio de fora, nós somos daqui, sempre estivemos aqui, não somos de outro lugar”. E reforça: “nós pertencemos a terra; para o não índio, a terra pertence a ele”.

Do outro lado, o ruralista Riedel contra-ataca: “Ontem, um produtor recebeu um ultimato, tem de sair de sua terra de acordo com a lei indígena. Eu respeito leis, cultura, usos e costumes, mas sou brasileiro, os senhores também são, temos de respeitar as leis do Brasil. Os indígenas invadem, põem marcas. Qual é a lei? Por isso pedimos a suspensão das demarcações. Não contra o acesso dos indígenas a terra, mas sem abuso.”

Vida X propriedade

Todos apelam para a Constituição. Em sua fala, o presidente da Acrissul, Francisco Maia, diz que “não queremos nada do que não nos pertence, mas não podemos deixar nossa cultura”. Lembrou “o Bacha” (referência ao ex-deputado federal Ricardo Bacha, proprietário da fazenda Buriti): “com sua fazenda, sua casa, suas fotos, suas histórias de vida, seu patrimônio, tudo queimado – não vamos deixar o direito que nós temos, pela Constituição: o direito à propriedade”.

A famosa cidadã de 1988 também é citada pelos indígenas: “A terra não se negocia, a terra é nossa, é um direito constitucional, e não foi o Estado que nos ‘presenteou’, foi a luta do povo brasileiro na Constituinte”, diz Alberto Terena. E o companheiro indígena complementa: “não podemos deixar que um boi valha mais do que uma criança indígena; dinheiro não vale mais do que a vida, está na Constituição.”

Impasse e solução

Diante das manifestações de indígenas e fazendeiros, o representante do CNJ, Rodrigo Rigamonte, disse que há um impasse, e nenhuma das partes “aguenta mais esperar”. Ele afirma que há de se apresentar uma proposta, se não definitiva, que amenize a situação, porque ninguém quer mais “só discutir”. Sem comentar a crítica do ministro da Justiça (ver histórico abaixo) sobre a “judicialização” dos conflitos e a morosidade judicial, ele reconheceu que a Comissão sobre a Questão Indígena, instituída pelo CNJ, foi constituída em 2011 e até agora não apresentou nada à sociedade.

Ele propôs a elaboração de um documento com um mínimo de acerto entre as partes. “Em uma conciliação, sempre algo se perde, mas o que é perdido é compensado pelo resultado final. Todos queremos paz e sossego nas casas, nas fazendas, nas estradas”, afirmou. Ele diz que a solução apresentada não é a final, que terá de ser “jurídico-política”, com a participação do Executivo federal.

A proposta que Rigamonte faz contém cinco pontos:

1. Cessação imediata de hostilidades; retornar, pelo menos, ao estado anterior a esse incidente;
2. Presidente do CNJ se compromete a intermediar junto ao Ministério da Justiça (ou outros ministérios): que receba as lideranças indígenas;
3. As audiências com o governo federal devem ser sempre bilaterais, por meio de um comitê, nunca com as partes isoladas;
4. Entregar ao presidente do CNJ a listagem das ações emergenciais/prioritárias, para que se estude uma solução de celeridade;
5. Comprometimento do CNJ em entregar documento da Comissão sobre a Questão Indígena peremptoriamente até julho.

Solução negociada

Depois de quase um dia inteiro de discussão, a proposta trazida pelo CNJ foi aprovada em parte. Os índios não aceitam, como “cessação das hostilidades”, a desocupação das terras. Os fazendeiros não aceitam negociar com áreas ocupadas. Em seu contundente pronunciamento, o presidente da Acrissul, Francisco Maia, afirmou: “Do mesmo jeito que os senhores têm história, nós também temos histórias de 50, 100 anos de famílias construindo seu patrimônio, sua vida. E pagamos impostos, contribuímos com a nação. Se os senhores estão organizados, nós também estamos organizados.”

Do lado dos índios, o argumento, mesmo reconhecendo o desespero em alguns momentos durante a audiência (“O povo indígena perdeu a paciência, desde 88 não conseguimos fazer nada!” – cacique Alberto Terena), faz um apelo à serenidade: “Nós demonstramos boa vontade e confiança nas suas lideranças, demos demonstração de paciência. Há mais de 20 anos esperamos solução para esse problema.”

Por fim, ficou marcado um prazo de 15 dias para que uma comissão composta por representantes do CNJ, das comunidades indígenas e dos fazendeiros solicite e agende uma audiência com o governo federal para discutir as propostas imediatas e um cronograma de ação para a questão indígena.

Enquanto isso

A sociedade se movimenta. No centro de Campo Grande, simultaneamente à reunião do CNJ com ruralistas e indígenas, aconteceu uma manifestação de apoio ao povo Terena. Durante toda a manhã de hoje, 1º de junho, na Praça Ary Coelho, estudantes, artistas, membros de movimentos sociais e militantes de partidos políticos mobilizaram-se e encheram as ruas com faixas e cartazes.

A manifestação se estendeu e virou um grande “cortejo” pelas avenidas do centro da capital sul-mato-grossense, puxado pelo Teatro Imaginário Maracangalha (grupo de teatro de rua), e com as mulheres indígenas. Com a adesão e o apoio dos populares e transeuntes, o ato materializou a fala de uma aldeã terena: os homens vão para a batalha; nós, mulheres, ficamos na resistência nas áreas.

De Campo Grande, Ana Cláudia Salomão

Histórico

• Localizada em Sidrolândia-MS (60 quilômetros de Campo Grande), a fazenda Buriti, de propriedade do ex-deputado federal Ricardo Bacha, ocupada por índios terena em 15 de maio, foi palco de um confronto entre os indígenas e a polícia, em 30 de maio.
• Do procedimento de desocupação, do qual participaram a Polícia Federal e a Companhia Independente de Gerenciamento de Crises e Operações Especiais (Gigcoe, do governo estadual), resultou a morte do índio Oziel Gabriel, de 35 anos. Ferido durante a operação, Oziel foi socorrido no Hospital Elmíria Silvério Barbosa, em Sidrolândia, mas não resistiu. A autópsia revelou que a causa da morte foi o ferimento a bala recebido pela vítima no abdômen.
• O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) publicou nota em que responsabiliza o governo federal pela morte de Oziel Gabriel.
• A Fundação Nacional do Índio (Funai) criticou a determinação do cumprimento da reintegração de posse antes do julgamento de um recurso que impetrou, sem que a entidade pudesse informar os indígenas e acompanhar as medidas para a desocupação.
• Em comunicação pela imprensa, o governo estadual de MS garante não terem sido usadas, pela equipe policial estadual, armas letais. A nota também diz que a questão é de responsabilidade do poder público federal.
• José Eduardo Cardozo, Ministro da Justiça, exigiu da Polícia Federal rigor na apuração do crime para verificar se houve abuso policial. Cardozo afirma que o conflito é conseqüência da “judicialização” a que estão sujeitos os processos demarcatórios” e reclama da morosidade. Segundo ele, “em 2010, o ministério baixou uma portaria reconhecendo o caráter indígena da terra, o que ensejou uma discussão judicial que perdura até hoje".
• O Ministério Público Federal (MPF) solicitou à família da vítima outra autópsia, o que, de início, foi recusado pela viúva, mas depois autorizado, e o corpo será novamente autopsiado por peritos de Brasília no Instituto Médico Legal (IML) de Campo Grande.
• A presidenta Dilma convocou reunião de emergência, da qual participaram os ministros da Justiça, José Eduardo Cardozo, da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, e da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho.