Universalizar o saneamento é desafio para o Recife

Governo de Pernambuco assina contrato de Parceria Público-Privada para ampliar os serviços de saneamento na Região Metropolitana do Recife e no município de Goiana. A proposta é universalizar o serviço, atingindo 90% da população e beneficiando 4,5 milhões de pessoas, em um prazo de 12 anos.

Audicéa Rodrigues, do Recife

Obras de saneamento em Recife

A assinatura pelo Governo de Pernambuco do contrato da PPP – Parceria Público-Privada para ampliação dos serviços de coleta e tratamento de esgoto na Região Metropolitana do Recife e no município de Goiana, no Litoral Norte do estado, traz uma nova perspectiva de avanço na solução de uma antiga demanda de milhares de pessoas que habitam a RMR e há anos arcam com o ônus da ausência de um serviço essencial à saúde, ao bem-estar e à qualidade de vida.

A iniciativa governamental suscita também reflexões sobre a dívida histórica de sucessivos governos com a população, bem como sobre a urgência na adoção de medidas saneadoras que reduzam drasticamente os impactos negativos da ausência desses serviços sobre a saúde pública, o meio ambiente e até mesmo o desenvolvimento socioeconômico de uma área que abriga 3,6 milhões de pessoas, o que corresponde a 42% da população do Estado, e concentra 65,1% do PIB estadual.

Estudo elaborado pela Fundação Getúlio Vargas para o Instituto Trata Brasil, em 2011, apontou que, com exceção do Recife, todas as cidades da RMR apresentavam à época déficits em algum dos três índices de saneamento avaliados, quais sejam, abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto.

Ainda de acordo com o estudo, nas cidades litorâneas da RMR 549 mil residências não contavam com cobertura de esgoto, com forte impacto na balneabilidade das praias e na saúde pública, e apenas 42% do volume de água consumido eram tratados, sendo o Recife a única cidade da região a apresentar melhora nos índices, mas ainda assim com déficit de quase 60% na coleta de esgoto.

Esses números refletem o atraso de ações saneadoras por parte dos governos, em um processo cumulativo que se arrasta desde os meados do século 19, quando teve início a construção das primeiras redes de abastecimento d’água e de esgotamento sanitário no Recife. É dessa época, inclusive, a primeira experiência de gestão privada dos serviços de saneamento na cidade.

Em artigo publicado no Jornal do Brasil, no início de fevereiro deste ano, os professores José Esteban Castro, da Universidade de Newscatle, na Inglaterra, e Léo Heller, da UFMG, identificam dois momentos dessa participação. O primeiro, entre a segunda metade do século 19 e meados do século 20, quando empresas privadas foram concessionárias desses serviços em cidades como Rio de Janeiro, Santos, Recife e Porto Alegre e, segundo eles, “foram afastadas pela notória incapacidade de estender os serviços para além das populações com claro poder aquisitivo”.

“A segunda onda foi caudatária da avalanche neoliberal verificada desde o final dos anos 1980. As agências multilaterais, Banco Mundial e FMI à frente, literalmente venderam aos países propensos a adotar o modelo, as ideias de Estado incompetente, de eficiência do setor privado e da capacidade das mãos invisíveis do mercado em garantir o fim da pobreza e da desigualdade. Este ideário teve claros reflexos no setor de saneamento em diversas partes do mundo e resultaram em um incremento da prestação privada dos serviços”, destacam ainda os docentes.

Eles chamam atenção também para o ressurgimento nos últimos cinco anos no Brasil da participação privada na área de saneamento, mas dentro de novas modalidades, entre elas a PPP, substituindo a tradicional concessão dos serviços que prevaleceu no país no século 19, modelo que foi restaurado no segundo mandato do governo FHC (1999-2002).

Avanços só nos grandes centros

Seja com governança pública ou privada, o histórico das ações no setor mostra uma sucessão de tímidos avanços e longos recuos, que se estenderam praticamente por quase dois séculos. Na década de 1970, o governo militar criou o Plano Nacional de Saneamento (Planasa), a primeira ação governamental sistemática voltada para o saneamento básico, cujas metas, definidas na década de 1980, não se concretizaram nos 20 anos seguintes.

A Pesquisa Nacional de Saneamento Básico realizada no ano 2000 pelo IBGE mostra que os avanços entre 1989 e 2000 se deram basicamente em municípios brasileiros de maior porte e situados nas regiões mais desenvolvidas, como o Sul e o Sudeste.

Só a partir do início dos anos 2000, o saneamento passou a constar mais efetivamente da agenda dos governos federal, estadual e municipal, apoiado na proposta de democratização dos serviços e no conceito até então inovador do saneamento ambiental integrado em substituição ao conceito de saneamento básico predominante na década de 1970, voltado exclusivamente para ações de abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem e lixo.

Um exemplo desse avanço conceitual é a experiência levada a cabo pela Prefeitura do Recife, a partir de 2001, na gestão do então prefeito João Paulo, que assinou convênio com o Governo do Estado visando à realização de obras de saneamento integrado nos bairros de Mangueira e Mustardinha, na Zona Oeste da cidade. Entre os serviços, além da ampliação da rede de abastecimento de água e recuperação da rede coletora e ramais condominiais, incluiu-se a construção de moradias e a pavimentação e drenagem de ruas.

A experiência trouxe outras novidades: a abordagem da questão do saneamento como direito à cidadania, onde os usuários são vistos como cidadãos e não como consumidores, e a gestão compartilhada entre os governos federal, estadual e municipal.

O pesquisador da Fiocruz Pernambuco, André Monteiro, destacou, em palestra na 1ª Conferência Internacional sobre Saneamento, realizado em fevereiro deste ano, no Recife, outro aspecto importante do projeto: Planejamento, articulação, mobilização social e engenharia com o mesmo nível hierárquico. “O saneamento tem, historicamente, a tecnologia centrada na engenharia. É importante que outros atores sociais sejam considerados dentro deste processo", ressalta o pesquisador.

O resultado da adoção desse novo paradigma aparece no Censo demográfico realizado pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 2010, que apontou o aumento de 56% no número de domicílios com acesso a rede geral de esgoto na Região Metropolitana de Recife, atingindo 460 mil de um total de 1,11 milhão de domicílios, em dez anos.

Para isso, contribuiu também iniciativas de outros municípios da RMR, a exemplo de Olinda, que, a partir de 2002 vem realizando, com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do Governo Federal, obras de saneamento, drenagem, pavimentação, contenção de encostas e construção de moradias, beneficiando principalmente a população mais pobre da cidade.

PPP de Pernambuco

Cercada de desconfianças e polêmicas, a PPP do Saneamento de Pernambuco foi anunciada pelo Governo do Estado em outubro de 2012. A proposta é universalizar o serviço, atingindo 90% da população dos municípios do Recife, Olinda, Jaboatão dos Guararapes, Paulista, Abreu e Lima, Igarassu, Cabo de Santo Agostinho, Itamaracá, Araçoiaba, Camaragibe, São Lourenço da Mata, Ipojuca, Moreno, Itapissuma e Goiana, beneficiando 4,5 milhões de pessoas, em um prazo de 12 anos.

Nesse período, deverão ser implantados cerca de nove mil quilômetros de redes de esgoto, entre substituição de tubulações antigas e ampliação da área de cobertura. A previsão é de que a recuperação dos sistemas existentes ocorra em um prazo de até dois anos a partir da assinatura da ordem de serviço.

Segundo o Governo do Estado, trata-se do maior projeto do gênero já realizado na América Latina. O custo total é de R 4,5 bilhões, dos quais R$ 3,5 bilhões do consórcio formado pelas empresas Foz do Brasil, do Grupo Odebrecht, e Lidermac Construções.

O Governo de Pernambuco faz questão de destacar que não se trata de privatização dos serviços e os ativos da Compesa – Companhia Pernambucana de Saneamento serão preservados. Garante ainda que não haverá aumento na conta, mantendo-se, inclusive a tarifa social de R$ 5,62 e a isenção da taxa de esgoto para as famílias de baixa renda.

Outro compromisso é a manutenção do atual modelo tarifário. Pelas atuais regras de reajuste da conta de água, a revisão tarifária ocorre a cada quatro anos. A cada ano deste período, a Agência Reguladora de Pernambuco (Arpe) determina a recomposição da tarifa, levando-se em conta os índices de reposição da inflação. A última revisão tarifária aconteceu em 2009.

Os professores José Esteban e Léo Heller são cautelosos quanto à adoção desse modelo de gestão para o setor. “As lições históricas demonstram que a inclusão da participação privada na prestação de serviços em setores com essas características reveste-se de precauções próprias. Uma delas é a necessidade de regulação efetiva, que consiga “domesticar” a sanha por lucros das empresas e proteger os interesses dos usuários, que, antes de “clientes”, são cidadãos portadores de direitos de acesso aos serviços e da adoção de mecanismos de controle social democrático sobre as empresas”, alertam.

Gestão pública ou privada, o real desafio dos gestores públicos é garantir a universalização do acesso ao saneamento não só aos habitantes do Recife e da Região Metropolitana, mas de todo o país, em um menor espaço de tempo possível, pois se trata de um serviço com forte impacto na saúde pública, aspecto primordial das ações do setor, como também da preservação da salubridade do meio ambiente, fundamentais para o exercício pleno da cidadania em bases verdadeiramente democráticas.