Movimentos sociais protagonizam audiência sobre cotas raciais

Pelo menos 400 pessoas estiveram reunidas na audiência pública que sacudiu a Assembleia Legislativa de São Paulo, no final da tarde de quarta-feira (13), que seguiu noite adentro. Na pauta, as cotas raciais nas universidades públicas paulistas. Estudantes, negros e brancos, além dos movimentos pró-cotas, foram os grandes protagonistas do debate, levando o recado aos deputados: “queremos debater e construir uma política inclusiva de cotas.”

Por Deborah Moreira
Da Redação do Vermelho


Plenário Juscelino Kubitschek da Assembleia Legislativa de São Paulo foi tomado pelos movimentos sociais durante audiência que discutiu cotas raciais / fotos: Deborah Moreira

Os movimentos negro e estudantil deixaram claro que não passará desapercebido o Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista (Pimesp), proposto de forma unilateral pelo governo Geraldo Alckmin (PSDB), impondo barreiras para a implementação da lei de cotas raciais nas universidades do estado. Além de debater, os movimentos querem dar sua contribuição para a democratização da universidade.

Inicialmente marcado para acontecer no auditório Franco Montoro, o debate foi transferido a pedido da deputada estadual Leci Brandão (PCdoB), presidenta da Comissão de Educação e Cultura, que realizou a audiência em conjunto com a bancada do PT. A presidenta da sessão solicitou um plenário maior devido a grande quantidade de presentes, o que acabou atrasando em meia hora o evento. Mesmo após quatro horas, a maioria permaneceu até o final, após as diversas intervenções de representantes do Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp), co-autor do Pimesp, e de lideranças estudantis, das comunidades negra e acadêmica.

A deputada comunista Leci Brandão até tentou conter os ânimos, mas a todo instante os estudantes faziam intervenções, entoavam palavras de ordem, levantavam cartazes, imprimindo na audiência a rebeldia necessária e na medida em que, ao final, foi saudada e reconhecida por Leci.

Em um desses momentos protagonizados pelos universitários presentes, eles cantaram o verso bastante simbólico do poeta baiano, José Limeira, em Negro homem, negra poesia, quando foi apontado na plateia o professor e cientista social da Universidade de São Paulo (USP), Kabengele Munanga: “Por menos que conte a história. Não te esqueço meu povo. Se Palmares não vive mais. Faremos Palmares de novo”.

O presidente da União de Negros pela Igualdade (Unegro), Edson França, presente na audiência, ressaltou ao Vermelho o significado da audiência pública: "Para nós a audiência é bastante relevante para primeiro mobilizar a Casa, os parlamentares para esse debate da cota. A Casa está muito distante disso. O governo Alckmin apresentou uma proposta, para o colegiado, mas como aqui é o espaço de representação do povo paulista, os deputados estaduais precisam entrar nesse debate. A gente tem percebido que em outros estados os parlamentos estaduais foram sujeitos bastante ativos no debate das cotas [raciais], assim foi quando ocorreu a discussão em nível federal, e assim precisa ser aqui em São Paulo. Temos um mandato bastante conservador no estado de São Paulo e a Casa está conservadora, a maioria da base do governo tem silenciado pontos importantes para os paulistas".

Edson e outras lideranças dos movimentos presentes defenderam o aproveitamento dos projetos de lei que já foram aprovados, discutidos e que traduzem a luta pela implementação das cotas raciais existente há mais de 10 anos.

“Viemos denunciar o caráter retrógrado, conservador e discriminatório dessa proposta do governo Alckmin e que desconsidera os 10 anos de cotas no Brasil. Não estamos iniciando uma discussão. O Brasil já tem uma discussão acumulada, tem resultados, tem avaliações apresentadas para o público e não se pode ignorar esse conhecimento coletivo do país. Não queremos categorias diferenciadas de cotistas. Queremos para São Paulo os mesmos direitos que os estudantes de outros estados têm”, destacou ele.

Por fim, Edson França também observou que a presença maciça de estudantes e militantes no plenário representa a força e o protagonismo que os movimentos têm nessa pauta: “É importante unificar de maneira coletiva uma proposta. Não só não queremos o Pimesp porque é uma proposta segregacionista, como queremos um modelo que já tenha sido proposto aqui na Casa, como o PL 530, assinado por 28 deputados, que atende o interesse da população pobre e negra do estado, que tem lutado pelas cotas”, completou o presidente da Unegro, em plenário.

Outros dois importantes representantes do movimento negro que estavam presentes, também  foram convidados a falar na audiência, em nome do movimento negro e entidades integrantes da Frente Pró-Cotas do Estado de São Paulo. Douglas Belchior, da Uneafro e o professor Silvio Almeida, do Instituto Luiz Gama.

“Depois da medida truculenta do governo de tentar impor um programa e apresentá-lo à sociedade em dezembro, sem dialogar com a sociedade, os movimentos se organizaram e reagiram com um grande manifesto bastante representativo. Nós estamos vencendo esse debate, a cada dia novos professores, setores da sociedade se colocam contra esse programa, esse projeto autoritário do Alckmin e do PSDB, bem como das reitorias. Hoje temos a oportunidade de iniciar um debate olho no olho, cara a cara com os reitores”, desabafou Douglas Belchior em entrevista ao Vermelho, pouco antes de subir ao plenário. “É um debate positivo, propositivo. Saímos daqui maiores do que quando chegamos”, concluiu.

De acordo com os representantes das organizações presentes, as mesmas não foram consultadas, nem mesmo a comunidade acadêmica das universidades paulistas estaduais, o que teria “atropelado os processos internos nas universidades de debate e diálogo”.

Qual o mérito do Pimesp?

Silvio Arruda esmiuçou, em sua fala durante a audiência, que o Pimesp traz três tipos de problemas: de ordem política, tendo em vista que está sendo imposto e não debatido, construído coletivamente; de ordem técnica, já que a construção do projeto em si, pouco se sabe sobre como foi feita e por quem foi construído, quais especialistas assinam o projeto; o terceiro, de ordem jurídica, que impede o acolhimento desse programa como um programa universal a ser implementado na universidade.

“Se o programa é de inclusão por mérito, qual o mérito das pessoas que construíram esse projeto? Não estou dizendo que não tenha, mas eu quero saber, quero ser informado para que eu possa discuti-lo com essas pessoas, já que o critério é de meritocracia para ocupar o espaço de poder”, exclamou Silvio Almeida sendo bastante aplaudido.


O professor de Direito Silvio de Almeida em plenário

College

Silvio Almeida fez questão de explicar o que é o college, uma espécie de sala de espera para estudantes de baixa renda e negros.
 
“Por fim, sobre as questões de ordem jurídica, esse projeto cria um grupo chamado college, onde estariam os alunos por um ano ou dois anos, em uma etapa intermediária para poderem ingressar na universidade, fazendo um curso técnico. Agora, eu não sei quem foi que concebeu essa ideia do college, será que é eficiente? Não há dados sobre isso. Mas parece uma proposta segregacionista, porque é uma proposta da Univesp, de ensino à distância, e, portanto, será negado a esses alunos a convivência universitária. E quem olhar a grade curricular desse curso verá coisas do tipo ‘empreendedorismo’, ‘liderança’, ‘organização do trabalho’. Agora, quem conseguir chegar ao final de dois anos do curso, vai se formar no quê? Em organização do tempo? Ou liderança, empreendedorismo? Vai trabalhar aonde?”, indignou-se Silvio, que também é professor de direito e metodologia científica.

“Há dados distorcidos sem citação de fontes. Falando como professor, se um aluno meu apresenta um projeto com dados sem comprovação eu reprovo”, concluiu o representante do movimento negro sob muitas palmas.

“É necessário a nova abolição, pra trazer de volta a minha liberdade”

Por volta das 20h30, depois de muitos representantes dos movimentos e das reitorias falarem, a deputada Leci Brandão quebrou o protocolo, deixando temporariamente a presidência da mesa – entregando-a ao deputado Adriano Diogo (PT) – para dar seu próprio testemunho sobre a questão racial.

Citando os versos do sambista Cartola, a canção Autonomia, Leci falou de sua importância, referindo-se à autonomia universitária, mas enfatizando que é preciso valorizá-la.

“Ai! se eu tivesse autonomia
Se eu pudesse gritaria
Não vou, não quero
Escravizaram assim um pobre coração
É necessário a nova abolição
Pra trazer de volta a minha liberdade”

“Cartola disse isso. E eu estou dizendo o seguinte: se eu tivesse autonomia, se eu pudesse eu gritaria que todas as pessoas têm direito ao acesso, à inclusão, independentemente da cor da pele, da religião, da opção sexual. Todas as pessoas, absolutamente todas as pessoas, têm direito à educação”, parafraseou a compositora e cantora.

Bastante emocionada, Leci, que é a segunda mulher negra a assumir um mandato de deputado, ao longo de toda a história da Alesp, lembrou do sofrimento daqueles que chegaram ao país a bordo dos navios negreiros: “Sabe o que acontece quando você favorece algumas pessoas, e desfavorece outras? Isso se chama discriminação. Eu acho que mérito, louvor, sabe o que é mérito? O seio das escravas negras que alimentaram a elite branca. Sabe o que é mérito? São os negros que foram para a Guerra do Paraguai e morreram. Sabe o que é mérito? São as mulheres e homens que foram torturados e dizimados e por isso temos a Comissão da Verdade aqui, hoje”.

Mais uma vez parafraseando Cartola, ela encerrou seu discurso: “Isso é mérito e autonomia. Se eu pudesse gritaria, não vou, não quero, eu não quero as cotas das cadeias, as cotas do analfabetismo, se eu pudesse eu gritaria: eu quero as cotas da educação para todas as pessoas”.

Antes de voltar à presidência, Leci lembrou sua trajetória, de momentos que foi chamada de “enxerida, que já teve na lista de subversiva, que já foi chamada de radical, encrenqueira, barraqueira” por já ter apontado para a importância das cotas. “Porque essa palavra que todo mundo disse aqui hoje, cotas, eu já falo há mais de 25 anos nos palcos”, declarou a deputada comunista.

Leci Brandão expressou sua alegria e satisfação em ver tantas pessoas reunidas, afirmando que já havia agradecido muito aos seus orixás, além de agradecer ao presidente Lula pela criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em 2003, tornando-se a primeira secretaria com status de ministério. “O presidente Lula criou essa secretaria por conta do movimento negro. O movimento negro já vem fazendo a luta das cotas”, frisou a parlamentar, dando um recado aos reitores presentes.

“Mas porque que eu estou feliz? Eu to feliz porque estou vendo aqui nessa plateia a diversidade: temos negros, brancos,morenos, loiros. Está todo mundo aqui como cidadãos brasileiros. Mas estou mais contente porque estou vendo cidadãos jovens, porque tem muita gente que gosta de falar mal de jovens, que jovem é maluco. Mas não é isso não. Pode pensar o que for, pode beber o que for, pode fumar o que for, mas [o jovem]pensa, pensa e está aqui”, destacou Leci Brandão, sendo bastante aplaudida.

No final da audiência, a presidenta da Mesa determinou, acatando sugestões dos movimentos presentes, que seja formada uma comissão para dialogar com todos os parlamentares com a finalidade de "fazer um projeto único, atualizado, com a participação de todos", tendo em vista que existe "um aglomerado de boas ideias”.

Presenças e ausência

A grande ausência sentida foi a do reitor da USP João Grandino Rodas, que enviou a professora pró-reitora Telma Zorn. Esta, por sua vez, tentou deixar o auditório sem que fosse percebida. O deputado Alencar Santana (PT), interrompeu a fala de uma estudante para chamar a atenção da pró-reitora.
 
"Professora, não sei se a senhora está indo embora ou não. Está? Bom, só queria fazer uma indagação que vossa excelência está numa audiência, aqui nesta casa, o reitor não veio, mas peço que respeite os estudantes que aqui estão". Sob um coro que gritava "fica, fica, fica", Telma Zorn retornou ao seu lugar.

Também não compareceu o reitor da Universidade de Campinas (Unicamp), Fernando Ferreira Costa, que mandou como representante o professor João Frederico.

Estiveram presentes e deram início aos debates o reitor da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), Júlio Cesar Durigan, e o coordenador da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp), Carlos Vogt.