Edvaldo Nascimento fala nos 100 anos da primeira usina do Brasil

Edvaldo Nascimento, vereador pelo PCdoB em Delmiro Gouveia concede entrevista à jornalista Carla Castelloti veiculada na Gazeta de Alagoas em sua edição deste domingo, em que publica extensa matéria sobre o modernizador do sertão neste que é o ano do centenário da Usina de Angiquinho, seu mais ousado projeto. Reproduzimos aqui a entrevista.

Alagoas

O maior legado que Delmiro deixa é mostrar para o sertão e para o sertanejo que a nossa região é possível e o sertanejo é capaz”, diz Edvaldo Francisco do Nascimento. A Gazeta de Alagoas conversou com o professor Edvaldo Nascimento que, além de ser o autor do prefácio da obra mais completa já escrita sobre o industrial cearense, é o responsável por preservar o que restou de sua memória na cidade alagoana que abriga sua mais importante obra. A biografia mais completa já escrita sobre o homem que construiu a primeira hidrelétrica do país, no município que hoje leva seu nome, é Delmiro Gouveia – o Pioneiro de Paulo Afonso, do jornalista alagoano Tadeu Rocha.

Gazeta. Professor, a história de Delmiro Gouveia é curiosa sobretudo porque ele, que veio de uma família pobre, cresceu e muito na vida numa época em que essa ascensão social era inimaginável. O senhor poderia nos falar um pouco mais sobre a infância de Delmiro Gouveia?

Edvaldo. Delmiro era filho de um cavalariano, Delmiro Porfírio de Farias, um cearense que percorria o interior do Nordeste brasileiro comercializando animais, produtos, café, querosene, açúcar… Delmiro Porfírio de Farias, de passagem por Recife, conhece uma moça que acaba raptando e levando para o sertão do Ceará. Essa moça é Leonila Flora da Cruz. Desse segundo relacionamento – Delmiro Porfírio já tinha um relacionamento no Ceará, onde era casado e tinha cinco filhos – nascem dois filhos, Maria Augusta, que nasce em 1861, e Delmiro Augusto, que nasce em 5 de junho de 1863. Por questões familiares, Delmiro Porfírio de Farias se viu obrigado a sair do Ceará, quando vai para a Guerra do Paraguai, onde morre.

Gazeta. E o que acontece com Dona Leonila?

Edvaldo. Estou contando isso porque a mãe de Delmiro ficou com os dois filhos, Maria Augusta com cinco anos e Delmiro com quatro, quando recebe a notícia da morte de seu companheiro. E como dizemos por aqui, ela estava no Ceará sem parente nem aderente, até que ela volta para o Recife. Mas Leonila, que era filha de uma família tradicional, acaba rejeitada pelos familiares. Por isso ela acaba indo trabalhar como doméstica para sustentar os dois filhos. Ela vai trabalhar como doméstica na casa de um conceituado advogado do Recife, o José Vicente Meira de Vasconcelos, e termina por se envolver com ele, mantendo um relacionamento amoroso. Mas Leonila morre quando Delmiro tem 15 anos. Ele era um menino mas teve que lutar pela sobrevivência, porque não queria ficar sob a tutela do padrasto; é quando Delmiro vai para o mundo trabalhar nos mais modestos empregos.

Gazeta. A que o senhor atribuiria essa vocação de Delmiro para os empreendimentos que eram uma completa novidade no Nordeste, a exemplo do centro de comércio e lazer que ele ergue no Derby? Ele começou a trabalhar aos 15 anos…

Edvaldo. Delmiro começa a trabalhar muito cedo e é bom nos lembrarmos que Recife, nesse período, é um dos principais centros urbanos e comerciais do país. Então o Porto do Recife era muito movimentado. A cidade tinha uma efervescência econômica, política e cultural. Delmiro é formado justamente nessa efervescência. Trabalhar no Porto do Recife, conviver com estrangeiros, faz com que Delmiro aprenda a falar inglês e italiano, por exemplo. Na convivência com os portugueses, ele aprende sobre negócios e comércio – é por meio desse relacionamento que ele se inicia no comércio de algodão e de pele, primeiro como funcionário de armazéns no Porto do Recife, onde vai conhecendo as minúcias, as entranhas dessa atividade comercial. Ele percebe que, numa dessas atividades, o comércio de peles, poderia buscar melhorar sua sobrevivência.

Gazeta. O comércio de peles foi sua primeira atividade então?

Edvaldo. É quando Delmiro começa a entrar no interior do estado para comprar peles como agenciador. Ele pegava empréstimos e comprava peles, que vendia e ganhava um dinheirinho. Daqui a pouco ele não precisava pegar mais dinheiro emprestado e já dominava uma região no comércio de peles e em pouco tempo se transformou no “Rei das peles” e já ganhava muito dinheiro. Foi do lucro que tinha que ele teve essa ascensão social que era algo muito difícil para quem não era filho de uma oligarquia. Não era uma coisa comum. Delmiro sai da pobreza, mesmo com toda dificuldade, e passa a fazer empreendimentos que até hoje marcam a cidade do Recife. Como a instalação do Mercado Coelho Cintra, conhecido como Mercado do Derby, que veio a ser o protótipo do que se tornou o shopping center no Brasil. Depois, ao lado do mercado, ele faz um hotel internacional, muito elogiado pelos jornais europeus, tamanho era o luxo do prédio. Delmiro ainda compra e reforma o Palácio de Apipucos, onde ele veio a residir – e que hoje á sede da Fundação Joaquim Nabuco. Ele também adquire a Usina Beltrão para o refino de açúcar.

Gazeta. É quando ele começa a fabricar açúcar em tablete, não é isso?

Edvaldo. Que é uma das coisas que ele fez e que não deram certo. Porque como Delmiro tinha problemas com a oligarquia econômica pernambucana, ele era boicotado e os senhores de engenho eram proibidos de lhe fornecer cana-de-açúcar; e ele acabou por ter um grande prejuízo na Usina Beltrão. Mas isso acontece quando Delmiro já é um homem rico e frequenta a alta sociedade recifense. É um home que recebia intelectuais, políticos e participava dos grandes eventos no Recife.

Gazeta. Delmiro Gouveia teve uma educação formal ou aprendeu fazendo?

Edvaldo. Ele aprendeu fazendo. Delmiro teve acesso somente aos primeiros anos de escola.

Gazeta. Poderíamos dizer que Delmiro é um dos primeiros brasileiros a agir conforme os preceitos do pensamento liberal, segundo o qual o trabalho é o principal atributo moral do homem?

Edvaldo. Sim, eu acho que é correta essa afirmação. Há um trabalho de doutorado da professora Telma de Barros Correia, no qual ela faz essa análise de Delmiro como o homem que antecipa o desenvolvimento do sistema capitalista no próprio Nordeste. E ele era sim liberal.

Gazeta. Delmiro saiu do Recife fugido depois de se apaixonar pela filha do governador da época ou ele sai da capital pernambucana falido?

Edvaldo. Veja só: Delmiro, homem já rico, com seus 38, 39 anos, contrariava alguns interesses da oligarquia política e econômica do Recife. No Mercado do Derby, por exemplo, ele comprou um grande estoque de farinha, que era vendida a um preço mais em conta do que se vendia nos estabelecimentos do Recife. Isso gerou um protesto dos comerciantes, que foram cobrar dos aliados deles, do governador, Sigismundo Gonçalves, e do prefeito do Recife, Esmeraldino Bandeira, algumas providências. Essas providências, por sua vez, eram apreensão de mercadorias de Delmiro e insultos a Delmiro. Isso criou um clima de muita animosidade entre Delmiro, seus amigos, aliados, e os amigos e aliados do prefeito e do governador.

Gazeta. Inclusive há um episódio em que Delmiro agride o então vice-presidente da época…

Edvaldo. Numa dessas situações, Delmiro foi ao Rio de Janeiro, onde encontra Rosa e Silva, então chefe dessa oligarquia (recifense) e vice-presidente da República. Delmiro acaba dando umas bengaladas no vice-presidente na Rua do Ouvidor. A situação piora ainda mais quando Delmiro volta para o Recife e os aliados de Rosa e Silva dão o troco e incendeiam o Mercado do Derby; além disso, Delmiro é preso junto com seu sócio, Napoleão Duarte, sob a acusação de terem tramado o incêndio para receber o seguro. O clima era desse nível. Ao ver os jornais da época, principalmente o Diário de Pernambuco, é possível ver os insultos trocados entre eles. O fato é que nesse período Delmiro entra em ruína econômica e, com problemas pessoais, brigando com a primeira esposa, vai passar um ano na Europa.

Gazeta. Mas ele volta ao Recife?

Edvaldo. Os negócios vão de mal a pior e ele é chamado ao Recife para tomar algumas providências. Quando volta, não sei se por ironia do destino ou se por birra, ele vai se envolver com a filha bastarda do governador – que tinha um relacionamento extraconjugal com uma senhora apelidada no Recife de Doninha, que tinha uma filha muito bonita, Carmela, de 16 anos, com quem Delmiro se envolve. Bom, era tudo que o governador queria para decretar a prisão de Delmiro e abrir um processo por rapto e defloramento de menores, acusação que foi parar no Tribunal de Justiça Federal. O advogado de Delmiro foi coincidentemente seu padrasto, que conseguiu um habeas corpus a favor de Delmiro, que a essa altura já tinha fugido, porque a ordem da polícia era de matá-lo.

Gazeta. Em nota do autor, Tadeu Rocha diz ter encontrado cartas de Delmiro para Carmela. Ela então foi esposa de Delmiro até a morte do industrial?

Edvaldo. Ela veio para o sertão de Alagoas, é a mãe dos filhos de Delmiro, que teve três filhos aqui no sertão alagoano: a Noêmia, Noé e Maria Augusta Gouveia. Só que ela tinha um temperamento muito forte. E ela era uma moça com uma cabeça de alguém que vive numa cidade como o Recife. Imagina ela chegar no sertão de Alagoas. Ela não se habituou. Inclusive, ela deixa o (filho) mais novo com aproximadamente um ano de idade e vai embora deixando os filhos com Delmiro, que manda chamar a irmã, então separada, para tomar conta dos filhos dele.

Gazeta. E como Delmiro se ergue novamente nos negócios em uma região onde não havia praticamente nada?

Edvaldo. Ele chega ao sertão alagoano em 1902. E a grande atividade lucrativa desenvolvida por Delmiro era o comércio de couro de animais. E mesmo ele morando no Recife, ele ia buscar essas peças no interior, no sertão. Ao chegar aqui, Delmiro encontra uma posição estratégica no limite de três estados, onde ele comprava a matéria-prima de seus negócios. Então ele retoma a atividade comercial como exportador de pele. Em 1909 já refaz sua fortuna e retoma a liderança no negócio. É com o dinheiro das peles que ele empreende. Lógico que depois ele agrega posses, capital internacional, mas a base da sua fortuna vem do comércio de peles, porque ele tinha lucros exorbitantes; por estratégias que ele utilizava, pela manipulação das peles, criou um sistema de classificação – segurava mercadoria para poder vender mais caro.

Gazeta. E como Delmiro dá início à construção da Usina de Angiquinho?

Edvaldo. Em 1909, Delmiro recebe no sertão um grupo de capitalistas americanos, que firmam contrato com ele – cujo grande projeto é produzir energia para vender para o Nordeste, principalmente para o Recife. Então esses capitalistas firmam contrato com Delmiro, mas para esse contrato ser realizado Delmiro tinha que conseguir concessões dos governos de Pernambuco, de Alagoas e da Bahia. Delmiro consegue as concessões de Alagoas e da Bahia, mas não consegue de Pernambuco. Outra grande decepção de Delmiro. À época, o governador de Pernambuco era o general Dantas Barreto, que foi eleito derrotando a oligarquia política de Rosa e Silva, que era inimigo de Delmiro. E o general Dantas Barreto teve o apoio de Delmiro para ser eleito, inclusive Delmiro ia para os comícios no sertão pernambucano a favor de Dantas Barreto. Então ele achava que teria apoio do governo de Pernambuco, mas ele recebeu um não. Então, os possíveis sócios americanos desistiram do negócio. E por isso Delmiro resolve por conta própria dar início a esse negócio. Ele readequa o seu projeto no sentido de que a energia produzida pela usina será utilizada num projeto que ele vai construindo em paralelo, a fábrica de linhas.

Gazeta. Em relação à personalidade de Delmiro Gouveia, ele não era chamado de coronel à toa. Foi por isso também que Delmiro foi assassinado por coronéis concorrentes?

Edvaldo. Delmiro tinha muitos problemas. Ele agia, quando necessário, com violência também. Basta dizer que no perímetro do núcleo fabril da Pedra a lei era dele, a igreja era ele e a polícia era ele. Delmiro adotou medidas (punitivas) que iam desde advertência aos moradores e funcionários até multas – e quando necessário castigos físicos também. Isso não só no perímetro da vila. Quando era contrariado partia para cima, caso de José Rodrigues, de Piranhas, que perdeu o monopólio do comércio de pele com a chegada de Delmiro, que teve problema com Zé Rodrigues tanto na disputa de posse de terras quanto no comércio de peles. Delmiro também teve problemas com Zé Gomes de Tacaratu (PE), com Rosa e Silva e Sigismundo Gonçalves. Era do temperamento de Delmiro esses enfrentamentos.

Gazeta. Passado um século da construção de Angiquinho, a história de Delmiro Gouveia ainda é muito pouco difundida. A que o senhor atribui esse esquecimento?

Edvaldo. Tem uma frase da filha de Delmiro, dita ainda na década de 1950, que ela disse durante o ato de inauguração da Chesf, quando o presidente da República (Getúlio Vargas) em seu discurso não fez referência a Delmiro como precursor do aproveitamento das águas de Paulo Afonso para a produção de energia elétrica. Esse esquecimento, aliás, foi noticiado em alguns jornais do Rio de Janeiro. Ao ler uma dessas matérias, a filha de Delmiro disse: “Em vida, meu pai foi vítima do trust internacional e continua, depois de morto, sendo vítima do trust nacional do silêncio”. O inconformismo dela era a não-lembrança do legado de Delmiro. Eu acho que isso acontece não só com Delmiro, mas com a nossa história regional. Por que não se conversa nas escolas sobre Canudos, sobre Zumbi, sobre o cangaço?

Gazeta. O arquivo com a coleção de documentos e peças iconográficas sobre Delmiro Gouveia está reunido na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife. Alagoas não deveria ter um espaço destinado a um homem cujos principais feitos tiveram como palco o território alagoano?

Edvaldo. Em Alagoas as instituições culturais que preservam algum acervo padecem da falta de apoio; elas não têm o apoio necessário para preservação de acervos, sejam eles documentais ou iconográficos. No Instituto Histórico e Geográfico (IHGAL) você vê parte do acervo se deteriorando. Quando visitei o Arquivo Público de Alagoas, todo o acervo estava no chão. Então as instituições que podem e devem cumprir esse papel não têm apoio, não têm estrutura. O Mercado do Derby construído por Delmiro é hoje sede da Polícia Militar; está lá uma marca cívica. O grande hotel internacional construído por Delmiro está lá. A Usina Beltrão, mesmo abandonada, está lá, e o governo do Estado de Pernambuco discute um projeto de recuperação para transformar o espaço em um grande centro cultural. A casa em que Delmiro morou em Apipucos é hoje o centro de documentação da Fundação Joaquim Nabuco.

Gazeta. No município de Delmiro Gouveia as pessoas podem ter acesso a algo?

Edvaldo. Em Delmiro, a casa em que o sertanista foi assassinado não existe mais, virou uma praça. A vila operária foi deteriorada. Você tem a Usina de Angiquinho, que está preservada e em processo de tombamento, tem o prédio da fábrica, que mantém parte de sua estrutura original, mas já foi modificada pela necessidade de modernizar o maquinário, enquanto que do ponto de vista de acervo temos pouca coisa no Museu Regional Delmiro Gouveia.

Gazeta. Para o senhor, qual o principal legado deixado por Delmiro Gouveia?

Edvaldo. Fazer o que Delmiro fez no Recife já foi algo extraordinário. Ainda hoje Delmiro é tido como um grande urbanista. Na época em que ele chega em Alagoas, no sertão, o conceito que o Brasil tinha do sertão – e que o próprio sertão tinha do sertão – e do sertanejo era um conceito de incivilizado, do incapaz, de uma região de impossibilidades. O maior legado que Delmiro deixa é mostrar para o sertão e para o sertanejo que a nossa região é possível e o sertanejo é capaz. Porque quando se faz menção ao nome de Delmiro está se fazendo, simbolicamente, referência aos sertanejos que edificaram a fábrica, Angiquinho, a cidade. Esse legado é muito maior que a fábrica que ainda está de pé ou que a grandiosidade de Angiquinho, a primeira usina do Brasil.

De Maceió, transcrito da Gazeta de Alagoas por Selma Villela.