Mídia é cúmplice da violência contra mulheres na América Latina

Apesar dos avanços conquistados nas últimas décadas, a “marca do colonialismo continua vulnerabilizando as mulheres negras e indígenas. A heteronormatividade continua oprimindo as lésbicas e mulheres transexuais. Temos muitas razões para continuar lutando”, não só “no 8 de março, mas todos os dias”. No dia internacional da mulher, as latino-americanas ainda têm muito para lutar e conquistar. Esta é a avaliação da psicóloga mexicana Jimena de Garay Hernández.

Por Vanessa Silva, no Portal Vermelho

Efe


De acordo com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), as mulheres seguem sendo vítima das mais diversas formas de violência em toda a América Latina

A ativista feminista e militante do movimento LGBT estuda o papel que os meios de comunicação exercem na construção de estereótipos, na legitimação da violência e do sexismo (atitude discriminatória para com o sexo oposto). Em conjunto com a pesquisadora Paola Bonavitta, desenvolveram um trabalho analisando estas questões nos veículos argentinos e mexicanos.

A conclusão a que chegaram é que os chamados Meios de Comunicação de Massa (MCM) são formadores de ideologia, definem desejos, interesses, aspirações e representações. Assim, as imagens estereotipadas das mulheres “reforçam a violência de gênero contra meninas e mulheres”. Esta violência é uma forma utilizada “pelos homens para manter o poder e os privilégios”, sendo admitida por uma série de convenções sociais, ou seja, é uma postura socialmente admitida.

Outra observação interessante a respeito deste trabalho é que apesar das diferenças socioculturais entre Argentina e México, as pesquisadoras não observaram grandes diferenças na representação da mulher nestes meios. O estereótipo é o mesmo. A violência se torna visível na exigência da perfeição, na justificativa da violência que os homens exercem sobre elas, gerando assim uma “insatisfação constante por não poder alcançar os objetivos difundidos pelos meios de comunicação”.

Apesar de ser considerado o “quarto poder”, os meios de comunicação estão sendo cúmplices e atores importantes na perpetuação desses pensamentos. “Não estão propiciando uma sociedade mais democrática e tolerante e sim gerando novas formas de violência, mais sutis, mais modernas. (…) são atrizes e atores diferentes, produtos diferentes, concepções diferentes, mas continuam o controle e a hierarquização social. Continuam as mesmas garras: o patriarcado, o androcentrismo, o sexismo, o capitalismo, o etnocentrismo”. Veja mais sobre a pesquisa aqui.

Jimena vive no Rio de Janeiro há dois anos. Veio para o Brasil porque achou “interessante o debate que acontece aqui entre movimentos sociais e a academia nas temáticas de gênero e sexualidade”. Confira a entrevista concedida, por e-mail para o Portal Vermelho:

Portal Vermelho: Em seu trabalho, vocês abordam a questão da violência de gênero nos veículos argentinos e mexicanos. Qual é a conclusão a que vocês chegaram com este levantamento?
Jimena de Garay Hernández: A partir de uma análise dos veículos da Argentina e do México, eu e minha colega Paola Bonavitta concluímos que a mídia em ambos os países desempenha um papel importantíssimo de perpetuação dos valores hegemônicos, que se baseiam no patriarcalismo, o androcentrismo, o machismo, o capitalismo, o colonialismo, o racismo e a heteronormatividade. Ao produzir e reproduzir formas “ideais” de ser e estar no mundo, com diferenças muito demarcadas entre homens e mulheres e a inquestionável superioridade dos primeiros, a mídia propícia uma discriminação para quem não se adéqua a essas formas, gerando, reforçando e naturalizando diferentes tipos de violência.

Os meios de comunicação têm um papel importante na definição dos papéis sociais e, consequentemente, de gênero. Até que ponto esta afirmação é verdadeira e como os meios impactam nas relações cotidianas neste aspecto?
Como disse anteriormente, os meios de fato têm um papel importante nesse processo, constituindo-se como um referencial muito presente na vida cotidiana de grande parte da população. Com isso não queremos dizer que eles sejam completamente responsáveis pela violência contra as mulheres, pois os seres humanos, apesar da alienação que marca a nossa sociedade, temos sido capazes através da história de produzir manifestações de resistência ao que nos é imposto. Assim, é possível ver uma postura crítica de alguns coletivos e uma pluralidade de discursos fora da mídia hegemônica (e algumas mínimas tentativas dentro dela) que desmistificam o binômio no qual nós mulheres somos constantemente colocadas: malvada/boazinha, esposa/vadia, santa/puta, etc., questões que também se veem atravessadas pela discriminação de raça e de classe social.

Sua pesquisa é sobre México e Argentina, mas e quanto ao Brasil? Como vê a exposição da mulher na mídia brasileira?
Eu vivo no Rio de Janeiro há dois anos e com essa experiência poderia dizer que acontece um processo bastante similar. As novelas, os programas de entrevistas, as propagandas de cerveja e outras muitas expressões da mídia hegemônica apresentam a mulher ora como donzela indefesa, ora como esposa perfeita e responsável por todas as tarefas domésticas, ora como compradora compulsiva, ora como objeto sexual. Esse último ponto talvez seja o que mais chamou a minha atenção neste contexto, pois ainda que no México e na Argentina também exista uma exaltação de certo corpo e certa sexualidade da mulher na mídia, tenho a impressão de que aqui essa exaltação é maior. Com isso não quero dizer que a nossa sexualidade deva ser escondida e limitada, mas que ela não pode ser apresentada em função das necessidades do homem (como produtor, como diretor, como consumidor) e nem restrita a um estereótipo. Outra coisa que chamou a minha atenção aqui é o acelerado crescimento dos meios liderados por evangélicos, o que também tem suas implicações ao se tratar dos direitos, corpos e estereótipos das mulheres.

Houve um avanço considerável das conquistas femininas nas últimas décadas. Os meios de comunicação acompanharam este avanço ou o discurso predominante ainda é machista?
Na sua maioria, eles continuam sendo extremamente machistas. As críticas, lutas e conquistas feministas ainda não chegaram com a intensidade apropriada nas telas, pois elas não são convenientes para os donos dos meios, que se baseiam nos estereótipos para manter certa ordem social, onde o homem branco heterossexual e proprietário continua no cume.

Na América Latina como um todo, como vê a questão da mulher? Que avanços observa e pelo que as mulheres ainda precisam lutar neste 8 de março?
Existem alguns avanços, como a presença das mulheres em alguns cargos políticos (inclusive de presidência) nos nossos contextos, algumas legislações que procuram frear a violência contra as mulheres, um investimento por parte do sistema de educação (sobretudo superior) em pôr fim a essa desigualdade, dentre outros. No entanto, infelizmente, a situação das mulheres latino-americanas ainda é precária. A violência contra nós cresce tanto no sentido da crueldade quanto na sutileza dos seus modos. O aborto ainda não é legalizado na maioria dos países, limitando a autonomia dos nossos corpos. A marca do colonialismo continua vulnerabilizando as mulheres negras e indígenas. A heteronormatividade continua oprimindo as lésbicas e mulheres transexuais. Temos muitas razões para continuar lutando, visibilizando o fato de que o feminismo não está nem perto de ser desnecessário, e que sua articulação com todos os movimentos relacionados com os direitos humanos é precisa para transformar os nossos países, a nossa região e o mundo inteiro. E essa luta acontece no dia 8 de março, mas também todos os dias desde nossos coletivos, movimentos, organizações, universidades, famílias, escolas e meios de comunicação propositivos.

Dignificada, Lila Downs