Clarice Lispector: “Quando não escrevo estou morta”

Às vezes enterramos nossos conceitos antes da hora, por medo de enfrentar seus limites. Isso vale para as noções de autor e de narrador, absorvidas gradativamente pela supremacia do personagem. Autoria maldita, inabordável metodologicamente como noção crítico-literária, impensável psicanaliticamente como expressão de auto-coerência, impraticável para um mundo em crescente escritura de si mesmo.

Por Christian Ingo Lenz Dunker* 

O livro de Maria Lucia Homem, No limiar do silêncio e da letra: traços da autoria em Clarice Lispector comemora os 92 anos de nascimento da autora de A Paixão de G.H. recuperando o tema da autoria para além a psicobiografia. A tese é muito interessante, pois consegue se desfazer de noções preguiçosas como a de estilo ou de marca textual, preservando a autoria sem a biografia. Pelo menos não é a biografia, como narrativa-mestre, a dominar todas suas evaginações ocasionais chamadas em seu conjunto de “obra”, que estão em questão neste caso.

Nenhum outro autor brasileiro teria levado tão a sério um dos desafios da desmontagem da forma-romance, na sua versão de contradição entre vida e obra, quanto Clarice. Desafio central para a psicanálise, uma vez que é esta forma que enquadra tanto as expressões diagnósticas quanto metapsicológicas de Freud. Uma psicanálise para além ou para aquém do romance: talvez tenha sido isso que Lacan foi buscar nos trágicos gregos. Outro universo sem autoria.

Maria Lucia aborda este problema em Água viva, romance onírico, quase sem ação, para-romance em primeira pessoa, na qual a figura típica do nascimento é colocada em paralelo com a construção do próprio texto. Suspensão do ordenamento gramatical, voltas que beiram o barroco, tentando capturar no tempo que flui o instante-já, no qual isso (it), seria apanhado pela palavra. O preço desta declarada procura é a dissolução e o esvaziamento da unidade eu-narrador-autor. Suas cenas de constituição, morte-vida, eu-outro, reflexividade e saber de si, tornam-se pretextos para esta “estética do desvio”, ou seja, para o nascer e renascer da palavra e do silencio. Ao repetir o impossível de dizer, sonhando com a potência da música e da pintura, “o melhor está nas entrelinhas …”.

Em a A hora da estrela a estratégia é diferente, mas a moral é a mesma. Desta vez é o personagem que se esvazia. Macabéia, sertaneja sem destino, paciente que não tinha nada, diz sim para a vida (seu primeiro namoro) no instante já depois nos qual é atropelada pela estrela, que tanto queria se tornar. Este “desconhecimento profundo da realidade de si” parece ser o preço a pagar, na quota do personagem, para que entre em cena a polifonia do narrador-personagem, do autor e até mesmo do leitor.

Finalmente, em Sopro de vida o problema da autoria alcança seu grau máximo, com a própria transferência do acabamento da obra para a secretária de Clarice, e com a criação de uma criatura-personagem, Ângela Pralini, que dialoga abertamente com a autora, como sua extensão.

“Em sua última fase, Clarice nos deixa ver que o autor não precisa mais se aprisionar como senhor de seu texto, mas pode exercer uma função, exercida no momento mesmo do gesto da escrita.” (p.180)

A crise da subjetividade que dá origem à constituição do sujeito literário contemporâneo é refeita, passo a passo, por Maria Lucia, neste trabalho que restitui a psicanálise na crítica clariceana. Mais além da abordagem biográfica e mais aquém da decifração hermenêutica, há ainda espaço para a questão da autoria como traço do sujeito. Trabalho inteligente e sensível, à altura do texto que aborda, é uma obra necessária para aqueles que ainda acreditam que a literatura tem algo a dizer sobre a formação do psicanalista, e para aqueles que acreditam que a literatura pode nos ensinar algo sobre a arte de ser outro. 

*Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista e professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da USP.

**Publicado originalmente no n.242 da revista Mente e cérebro.