Fiorentini: Do Manifesto de Córdoba até os dias atuais. Parte 2

A educação sempre esteve no horizonte dos processos políticos de integração. Seja sob a ótica conservadora, como a chamada globalização neoliberal que tenta ignorar os princípios do Manifesto de Córdoba.

Por Mateus Fiorentini*

Ou, nos processos anti-neoliberais, ou de cunho desenvolvimentista com forte compromisso social, por exemplo. Nesse cenário é possível destacar dois processos respectivamente: o Plano Bologna e a experiência iniciada a partir das Conferências Regionais de Educação Superior (CRES) na América Latina e o Caribe. E, a partir disso é fundamental encontrar qual seria a relação da educação com o atual processo de integração latino-americana.

A primeira experiência que se pode considerar exitosa de integração educacional foi o Plano Bologna. Após anos da criação da União Europeia, no ano de 1999, os ministros de educação europeus lançam uma declaração conjunta. Essa declaração ocorre após reunião dos mesmos encarregados pelos Ministérios de educação dos países da União Europeia, na Universidade de Bologna, Itália.

Os marcos do acordo de Bologna são: adaptação das leis de ensino superior dos países membros, revisão dos currículos com a criação de créditos comuns, reconhecimento dos diplomas e sistema de avaliação comum. Partindo disso, estipulava duração mínima de 3 anos para os cursos de graduação, 1 ano e meio a 2 para os cursos de mestrado e doutorado. Dessa forma, criou-se o Espaço Europeu de Ensino Superior com o objetivo de integrar os sistemas de ensino superior dos países da Europa.

O objetivo do programa era gerar uma educação basicamente voltada para formar o jovem para o mercado de trabalho. Dessa forma, o desenvolvimento do programa foi nefasto. Pois, a partir da aplicação do plano Bologna, o que imperou nas universidades foi a lógica mercadológica, desenvolvendo um processo de mercantilização da educação contundente. Como o objetivo do programa era o mercado de trabalho, foram as regras do mercado que se impuseram no ensino superior. E, a duração mínima dos cursos de três anos se fez regra, uma vez que a lógica era colocar o jovem a disposição do mercado o mais rápido possível. Possivelmente isso também dialogue com a crescente falta de mão de obra em idade ativa na Europa, acentuada nos anos 90.

Devido a isso o nível de qualidade da educação superior ficou estabelecida somente pelos critérios dos standards da UE. E, se promoveu um rebaixamento profundo da qualidade de ensino. Com isso, esse jovem, formado em três anos e com níveis baixíssimos de qualidade, já não interessa ao mercado devido a formação precária. Para atender os interesses do mercado é preciso possuir um mestrado, que em seguida tampouco atende os interesses do mercado, pois os mestrados de um ano e meio não ofereciam uma formação qualificada.

Dessa forma, passou a ser preciso um doutorado para concorrer a um emprego, e com isso desenvolveu-se um mercado de pós-graduações muito agressivo. Além disso, vale registrar que a produção científica e tecnológica e a extensão estavam condicionadas ao mercado e não se incluíam no plano Bologna. Ou seja, a mobilidade acadêmica não vinculava a ocupação do estudante a pesquisa nem extensão. Durante muito tempo, e ainda hoje, muitos setores tentam reproduzir essa experiência na América Latina.

Na América Latina a discussão em torno a um processo de integração educacional do continente inicia-se no final dos anos 90. Especificamente com a realização da primeira Conferência Regional de Educação Superior na América Latina e o Caribe de 2000 em Havana, foi que o tema ganhou força na região. Contudo, os setores que compunham espaços como esses eram bem distintos aos da UE. Na América Latina, em boa parte dos países, as universidades foram redutos da resistência a aplicação do modelo neoliberal, embora fora um dos setores mais castigados. Dessa maneira, a tentativa de importar e exportar o Plano Bologna para o continente latino-americano sempre enfrentou dificuldades. Por isso, o debate sobre a integração educacional da região ganhou mais força a partir dos anos 2000.

Com a eleição de governos progressistas, anti-neoliberais, desenvolvimentistas, com forte cunho social nos países, em especial da América do Sul, o tema do papel do Estado retorna ao centro do debate. Dessa maneira, o investimento público por parte do Estado na educação retorna ao quotidiano das sociedades latino-americanas.

Foi nesse novo cenário que se realizou a II CRES, no ano de 2008, em Cartagena de Índias, na Colômbia. Essa conferência tinha como objetivo preparar a Conferência Mundial de Educação Superior (CMES) de 2009 em Paris. A construção da CRES 2008 se deu em um marco de um amplo processo onde os estudantes merecem um importante destaque. No primeiro parágrafo após a introdução a declaração final da conferência diz que
“O amplo processo de preparação deste evento contou com a ativa participação das comunidades acadêmicas da região, incluídos os estudantes representados pela Organização Continental Latino-americana e Caribenha de Estudantes (OCLAE).

Tal participação foi realizada em múltiplos fóruns e encontros de caráter nacional, sub-regional e regional, cujas conclusões nutriram o evento” (Declaração final da II Conferência Regional de Educação Superior, Cartagena de Índias, Colômbia; 2008).
Assim, a OCLAE, organização unitária dos estudantes latino-americanos e caribenhos, foi a única organização social mencionada no texto final da conferência.

Então, a CRES 2008 se configurou como um importante espaço de afirmação da luta em defesa da educação pública, gratuita e de qualidade. E, isso foi muito bem explicitado na primeira fase da declaração final do evento quando diz que “a Educação Superior é um bem público social, um direito humano universal e um dever do Estado”. Ainda, esse foi um marco para a afirmação da soberania regional e nacional frente aos intentos neocoloniais que, todavia seguiam e seguem vivos na região. Fez isso resgatando um princípio que baseou a Reforma de Córdoba de 1918 que defendia a construção de um pensamento genuíno e originário latino-americano. E, assim, afirma que a integração educacional do continente deve estar a serviço de um projeto de desenvolvimento que garanta a soberania nacional e contribua na construção da identidade latino-americana.

A CRES 2008 definiu os princípios do processo de integração educacional da América Latina e do Caribe. Define a educação superior como um bem público e social, direito humano universal e dever do Estado. Define também, que esta educação deve contribuir para a identidade continental. Defende a recuperação da educação pública sucateada pelo processo de mercantilização neoliberal e a regulamentação do Capital transnacional da educação. Rechaça a inclusão da educação nos acordos da Organização Mundial do Comércio. Assim, cria os princípios políticos e filosóficos da integração educacional do continente. Sendo assim, um rechaço contundente a aplicação do Plano Bologna e as medidas neoliberais na América Latina e o Caribe. Ainda, a CRES 2008 cria o Espaço de Encontro Latino-americano e Caribenho de Educação Superior (ENLACES) composto por 8 redes universitárias nacionais e regionais, entre elas a OCLAE para gerar e gerir as políticas educacionais para a região.

Ainda mais, apresentou os desafios desta integração. Dentre eles esta “o fomento a mobilidade intra-regional de estudantes, pesquisadores, professores e pessoal administrativo”. Ainda, “mútuo reconhecimento de estudos, títulos e diplomas sobre a base de garantias de qualidade, assim como a formulação de sistemas de créditos acadêmicos comuns aceitos em toda região”. Além disso, a criação de instrumentos de avaliação regionais e sub-regionais que estabeleçam critérios de qualidade foram pautados. Ou ainda, “empreendimento de projetos conjuntos de pesquisa e a criação de redes de pesquisa (…)” e o estímulo ao estudo e difusão das línguas regionais. Enfim, a CRES 2008 estabeleceu, assim, os pilares para a integração educacional da região e se configura como um importante instrumento de luta em defesa desse tema.

Por fim, em um cenário de avanço dos setores progressistas e de esquerda da América Latina é preciso colocar a universidade no centro desse projeto. Nesse contexto a Universidade assume um papel central no sentido de construir uma América Latina unida. Isso quer dizer construir as condições para que se possa compartilhar conhecimento, ciência, tecnologia, produzir um conhecimento comum respeitando as diferenças. Ainda mais, colocar a universidade no centro do processo de integração é contribuir com a construção de um continente soberano e independente do ponto de vista da sua produção científica e tecnológica. Este é o momento de colocar o tema em pauta e avançar na integração da América Latina. E, assim como em 1918, há 95 anos, na Reforma de Córdoba ou nas passeatas do Fora Collor o movimento estudantil possui um papel estratégico.

Parte 1: Do Manifesto de Córdoba até os dias atuais. 

Mateus Fiorentini é secretário executivo da Organização Continental Latinoamericana e Caribenha de Estudantes (OCLAE)