CNV ouve primeiro torturado fora do período da ditadura

Em novembro passado, o empresário baiano Boris Tabacof, 84 anos, superou um trauma e contou, pela primeira vez, inclusive para membros de sua família, fatos ocorridos há exatos 60 anos: as torturas que sofreu em 1952 durante a prisão, em virtude do apoio que dava, na Bahia, a um grupo de militares nacionalistas e comunistas que foram perseguidos nas Forças Armadas durante o governo eleito de Vargas (51-54

O depoimento do empresário foi concedido em São Paulo à Maria Rita Kehl, José Carlos Dias e Paulo Sérgio Pinheiro, membros da Comissão Nacional da Verdade. Na missão da CNV está a apuração das graves violações de direitos humanos ocorridas no país entre 1946 e 1988. Aos dezessete anos, Boris Tabacof, impactado pelas barbaridades cometidas durante a 2ª Guerra Mundial, entrou para o partido comunista. Judeu e filho de imigrantes estava no primeiro ano de engenharia civil, na Escola Politécnica da Bahia.

Após vários anos no PCB baiano, que forneceu líderes nacionais da agremiação, como Mário Alves, Jacob Gorender e Carlos Marighella, Tabacof foi promovido várias vezes até se tornar dirigente do Comitê Estadual do Partido Comunista Brasileiro, o qual deixou somente em 1956, após a revelação dos crimes de Stalin na União Soviética.

“Fui secretário de organização do comitê estadual da Bahia do PCB, o segundo cargo do partido no Estado. É aí que entra como eu tenho a ver com todo esse movimento, que foi um movimento dentro da esfera militar”, revelou Boris.  Segundo ele, o PCB tinha uma organização dentro das Forças Armadas, tinha células do partido, era o conhecido como MIL (de militar). Essa organização era secreta, nem mesmo os membros sabiam de sua existência, porém tinha um elo do partido civil com os militares.

“Como secretário de organização do comitê estadual eu era a ligação com os militares, a sexta região militar, que era Bahia e Sergipe”, relembrou Tabacof. O então dirigente do PCB afirma que não participava diretamente das atividades dentro das Forças Armadas e por isso não sabe dizer quem eram todas as pessoas da área militar, nem quais eram os planos desse grupo. “Eu só tinha contato com uma pessoa, um cabo do Exército cujo nome de guerra era Plínio”, diz Boris.

Tabacof afirma que era um elemento de ligação do partido, que só dava suporte técnico para a área militar, enviando material de ordem ideológica. As atividades do grupo militar do PC foram investigadas em inquéritos policiais militares instaurados em muitos lugares do Brasil. “Isso mostra que não foi algo episódico”, esclareceu.

O então militante comunista foi preso em 20 de outubro de 1952 dentro de um ônibus. Além dele, apenas mais um civil e 28 militares foram presos para responder a um inquérito para apurar o envolvimento de militares com o Partido Comunista. Segundo o depoimento de Boris, todos foram presos da maneira mais violenta possível, porque queriam que ficasse provado que havia um complô comunista que queria assumir o poder e que era simpático aos soviéticos.

TORTURA E MAUS-TRATOS – “Foram bofetadas de todo o jeito e me arrancaram do ônibus, me colocaram numa caminhonete e essa caminhonete foi direto para o Forte do Barbalho”, descreve o ex-ativista. Segundo ele, em um pátio central grande havia celas semi-subterrâneas, “com grades, cobertas de tábuas para ninguém ver o que estava acontecendo”. No forte, as torturas começaram: espancamento e privação de sono sob ameaça de uma baioneta.

“Me obrigaram a tirar a roupa e a ficar nu durante vários dias e a única coisa que tinha nesse cubículo era um balde para as necessidades e esse balde não era retirado. Então tinha que dormir no chão e, de vez em quando, chegava um soldado e jogava água”, relembra. A comida servida era precária e ruim, afirma Tabacof.

“O movimento da esquerda era para denunciar a entrega do Brasil para o imperialismo. Quem estava no poder militar eram justamente esses tais entreguistas. E eles instauraram inúmeros inquéritos como este”, acusa Boris.

“No total, fiquei preso pouco mais de 400 dias. E como eu não estava contando nada que eles queriam, nem queria assinar, eles foram piorando as coisas. Eu fiquei alguns dias de pé com um soldado, de baioneta calada, ao meu lado e não deixavam que eu me sentasse”, revelou.

Levado para a base aérea, Tabacof conta que foi posto num avião da FAB para Sergipe. Queriam saber quem eram os comunistas de Sergipe. “E lá eu fui colocado numa cela da penitenciária de Aracajú e fiquei 50 dias em total isolamento”, completa.  “Estava tão abatido que havia perdido a noção de tempo e espaço”, disse.

CONFISSÃO – Quando voltou de Sergipe, sem forças, Tabacof acabou assinando uma confissão de que o Partido Comunista estava infiltrado nas Forças Armadas. “Eu e todos os 30 assinamos a confissão. Eles tinham concluído praticamente o objetivo deles. Na época não tinha nada no código penal militar que dizia que ser comunista no Exército era crime”, relata. O engenheiro respondeu ao final do processo em liberdade, após um habeas corpus obtido no final de 1953.

Em julho de 1954, houve o julgamento (auditoria militar), no quartel da Urca. “Depois que eu fui solto, fiquei sabendo de coisas terríveis. Houve vários boatos, que eu havia sido hospitalizado, estava louco. Minha mãe sofreu muito”, lamenta.

Depois do episódio, Boris se formou em engenharia civil e hoje, aos 84 anos, com apoio da filha, a psicanalista Heidi Tabacof, conseguiu pela primeira vez contar em público sua história. Já com a voz embargada, ao final do depoimento, Tabacof revelou que seu depoimento era praticamente inédito: “Eu nunca conversei com a família, nem com ninguém (sobre esses fatos). Claro que a gente vai tendo essas marcas, que aí já é assunto da doutora Maria Rita, eu não sei explicar por que, contar essas histórias, até mesmo dentro da família, foi sempre muito difícil”. Hoje, segundo Heidi, Tabacof voltou a se interessar por temas relacionados à repressão e, inclusive, leu o livro “K.”, de Bernardo Kucinski.

 

*Com Ascom CNV