Ethel de Paula: Presente para o cronista Rubem Braga

Uma carta íntima, um poema de presente, um texto para Rubem Braga. A jornalista Ethel de Paula descortina sua relação com o cronista numa escrita cheia de intensidade

 Para Rubem, Alexandre, Júlio e Mário

A falta que ele me faz espreguiça como um velho Urso e é preenchida de ar denso e morno, um vento terral. Dentro dela moram o conde e o passarinho; a hora neutra da madrugada; um pé de milho; uma receita de casa; um homem rouco; o vassoureiro; os jornais; a borboleta amarela; a mulher esperando o homem; o cajueiro; pedaços de cartas; os amantes; a primeira mulher do Nunes; os pobres homens ricos; a vingança de uma Teixeira; as luvas; os sons de antigamente; a viajante; um sonho de simplicidade; o Amor, Desamor. Rubem Braga, o cronista que faria 100 anos nesse tórrido janeiro de 2013, viveu em voz alta até 1990, escrevendo crônicas como quem empresta os óculos para acudir nossas vistas cansadas, como quem nos convida a subir em árvores e olhar a vida da perspectiva dos passarinhos, do alto até embaixo, com o máximo de leveza, retirando peso do mundo.

Assim, debaixo das asas do Sabiá, de carona com ele, ficou mais fácil pousar no centro nervoso do dia-a-dia que tende a nos cegar e petrificar. E é por essas e outras que devemos comemorar o aniversário do Rubem com as boas coisas da vida, com os pequenos acontecimentos banais e extraordinários, com o que há de sublime no precário, com o muito de nós que corre na veia do Outro, com notícias comuns e histórias demasiado humanas que, estranhamente, vêm desaparecendo dos noticiários desde que ele nos deu um olé. Pois vou lhe contar algumas, meu caro, que tenho visto por aí e me lembram você, inevitavelmente, pelo que carregam de intensidade…

Sabe que dia desses descobri um jardim com orquídeas cultivado no quintal de um casebre em plena “faixa de Gaza” do Pirambu? Você não conhece o Pirambu, eu sei, mas conhece os morros cariocas, então faça aí uma projeção ainda que desproporcional e tente não se arrepiar com o zunir de balas que lá também marca a triste disputa de um naco de poder em mais uma favela vitimada pela desigualdade social tipicamente brasileira… Pois foi bem nessa interseção entre moradores de guerra e paz que conheci o Julio e seu jardim. Ele é o mestre formador de uma turma de jardineiros no Pirambu. Esses moços, pobres homens ricos, trabalham juntos cultivando os jardins de muitos dos condomínios e mansões das áreas nobres de Fortaleza. E assim ganham a vida honesta e poeticamente, Rubem, florindo nossa árida cidade e premiando, como você, nossas vistas cansadas com a beleza que pode brotar da terra assim como do Homem.

E não sei se já lhe falei do Mário… outra iluminação, um vagalume em forma de gente que conheço há uns bons anos e de quem me tornei amiga íntima, mesmo que ele não saiba disso, já que o discernimento não é exatamente a melhor de suas qualidades. O Mário é um andarilho. Um poeta andarilho que, como você, também é chegado em mulheres e tem rompantes de sensualidade. Ele perambula pelas ruas maltrapilho e maltratado, mas há um tanto de dignidade, verdade e elegância nisso que só você vendo para poder entender e escrever a respeito. E foi esse dândi das ruas, esse estranho no ninho em suas errâncias desarrazoadas, que um dia escreveu um poema que acho que você iria gostar. Chama-se “Antropofagismo” e torço para que essas rimas tortas possam também lhe arrancar um riso franco, como aconteceu comigo e torna a acontecer sempre que leio, pela meninice e safadeza embutidas nas entrelinhas.

É um presente meu que ora surrupio do Mário, já que temos todos nós intimidade e não posso nem devo arrancar uma orquídea do quintal do Pirambu para lhe oferecer com todo o meu amor. Rubem, mais do que sua falta, acho que respiro é sua presença em muito do que vejo e sinto. E eis que isso é doce e só pode ser um presente secreto seu para mim. Um presente que guardo desde que experimentei a desmesura de meu primeiro “namoro-com-ênfase”. Você veio junto com ele, lembra? Pelas mãos do namorado de então, desembrulhado para presente, ainda com poeira de sebo. E casou tão bem conosco, com a nossa febre de amantes enamorados de livros, que logo passou a Braguinha, já íntimo. E assim ficou entre nós, literalmente, entre o acordar e o dormir, como o amante ideal, invisível e consentido, alguém com quem eu podia manter um chamego paralelo, entre suspiros, calores e olhos rasos d´água. O namoro se foi. Mas deixou um eterno gosto de vida vivida e alegria infantil. E você, que não passa, é claro que tem tudo a ver com isso.

Beijos antropofágicos de corpo inteiro.

Sua, Ethel.

ANTROPOFAGISMO
Mario Gomes

Eu, sem ser antropófago,
já saboreei muita gente por aí.
Minhas preferências são os esbeltos
violônicos corpos femininos: a mulher.
Ah! Se a humanidade fosse toda antropófoga
como eu teria o prazer de ser devorado
em um banquete ou bacanal de lindas garotas
sexys, histéricas, eróticas
e eu, em cima de uma mesa qualquer totalmente nu.
Assado ou cozido.
Recheado de cebolas, tomates e farofas.
Enquanto Odete espetava um dos meus esverdeados olhos
que outrora foram profanos,
Judite arrancava minha língua e mastigava furiosamente.
Depois Maria Helena
pegava uma faquinha
de mesa e cortava
delicadamente meu pênis ereto e dizia entre-dentes:
– Como é gostoso esse Mário Gomes.

Ethel de Paula é jornalista.

Fonte: O POVO