Ana Karla Dubiela: Rubem Braga – Entre Rio, Cachoeiro e Paris

A pesquisadora Ana Karla Dubiela discorre sobre seu longo relacionamento com Rubem Braga. De seu primeiro livro, lido na infância, à fase adulta, quando transformou o amor pelo cronista em profissão

Uma garotinha dentuça e esquisita, com óculos de grossas lentes, sentava no “mercantil” e esperava a mãe fazer compras lendo tudo que havia por ali. Sim, no meu tempo, como dizia Rubem Braga, “todas as geladeiras eram brancas e os telefones eram pretos”… e havia livros nos supermercados! Foi lá que começou o meu vício. Adulta, já jornalista, redescobri a delícia de degustar Rubem Braga: as pesquisas da especialização e mestrado viraram livros. Um alívio saber que alguns acadêmicos estavam equivocados: a obra de Braga teve fôlego até o doutorado, um “improvável” diálogo com Walter Benjamin.

A crônica bragueana é um sem número de “achados e perdidos” de linguagem, como diz David Arrigucci Jr, e se consagrou como rara unanimidade nacional. Clarice Lispector chegou a ligar para Braga, “o inventor da crônica”, para saber como se escreve uma. Manuel Bandeira dizia que a primeira coisa que fazia aos domingos era correr até a banca e ler o texto do amigo. Além da crítica, Drummond, Vinícius, Cecília Meireles e tantos outros declaram a supremacia de seu texto, que toca de imediato a alma de quem lê.

Aos 15 anos, o mago da crônica já soltava suas farpas políticas no Correio do Sul; depois, formado em Direito, escreveu no Estado de Minas “Como se fora um coração postiço”, que abre O conde e o passarinho (1936). O lirismo vai se construindo entre uma ou outra crítica social e política. Cronista combativo, jornalista crítico, um dos fundadores do Partido Socialista Brasileiro (PSB), sócio da Editora do Autor (e Sabiá), repórter dos Diários Associados, correspondente de guerra e diplomata, entrou para a história da literatura (e não do jornalismo) pela simplicidade encantatória de seus textos. Foi responsável por uma reviravolta na crônica moderna, que hoje tem sua obra como referência.

Certo dia, o jornalista Alberto Dines comentou que um amigo seu estava escrevendo a biografia do Braga. Escrevi para Marco Antonio de Carvalho, mediei sua palestra na I Bienal Rubem Braga e revisamos juntos, no dia 22/04/2007, o livro (Rubem Braga – um cigano fazendeiro do ar, Globo, 2007, Prêmio Jabuti). Antes mesmo do lançamento, Marco nos deixou. Comecei a ler os estudos de Benjamin sobre Baudelaire e acabei flanando com eles, o que me levou ao doutorado na UFF. Aprovada pela Lei Rouanet (Minc), a tese busca patrocínio privado (com 100% de desconto no Imposto de Renda) para ser editada e lançada em Vitória, Cachoeiro, Rio e Fortaleza, ainda em 2013.

A pesquisa envolve as Notas de Paris (inéditas em livro) e a coletânea Um cartão de Paris, que reúne seus últimos textos (1988/1990). Nela, narrador e cidade navegam pelas águas mansas da experiência acumulada, de quem sabe que não há solução definitiva para as mazelas humanas/urbanas e que a felicidade dura o tempo de um raio, em contraponto com o olhar estrangeiro do cronista, quando ainda acalentava um sonho feliz de cidade, na Paris de 1947.

O vaivém entre dois momentos da vida de Braga (1947 e 1988/90) e entre três cidades diferentes dialoga com as cidades de Benjamin e do poeta Charles Baudelaire. O vento da modernidade, com suas contradições, fragmentos e desassossegos, flana pelos espaços urbanos modernos. Faz emergir o brejo da aura, o milagre da pintura, os pombos antropofágicos, os sonhos coletivos da modernidade, o porão do esquecimento e da lembrança, o valor do pequeno e do grande na História. Em um tópico à parte, na íntegra, os 14 textos de 1947 escritos em Paris, cedidos pela Casa de Rui Barbosa. O modo de (d)escrever a cidade, o túmulo de Baudelaire, o momento entre guerras, as festas populares, a feira, o cinema, o governo fraco, o intimismo e o surrealismo demonstram como a crônica pode ir além dos estreitos limites do efêmero. A ideia que fica é a de que Braga realizou seu sonho de simplicidade no meio da desarrumação urbana, ao achar uma vereda linguística “que irmana o homem e o bicho, a árvore e a água”, onde o profano e o sagrado, a aura e a técnica caminham em busca do prazer e fazem história.

Ao ver sua vida anoitecendo, em 1990, ano de sua morte, Braga flanava em suas cidades internas e confessava: “Foi então que passou por mim a brisa da terra; e essa brisa que esbarrava em tantos ângulos de cimento para chegar até mim ainda tinha, apesar de tudo, um vago cheiro de folhas, um murmúrio de grilos distantes, um segredo de terra anoitecendo”. Ao esperar a lua, assim como a morte, Braga traduz o que disse Baudelaire: “A simplicidade embeleza a beleza!” E é este auxílio luxuoso do que é simples e belo, como as penas de um pavão, que muitos escritores tentam e que ele alcança, na sua boa e velha jangada, “tocando devagar por toda a costa do Brasil, parando para pescar, vendendo banana ou comprando fumo de rolo”.

Clarice afirmava que “existem mil rubens em Rubem Braga”. Alguns deles estão na fã page Rubem Braga 100 anos, que criei para divulgar seu centenário. E, para multiplicar o prazer de ler e viver Rubem Braga – mais atual que nunca – junto com seus familiares e leitores. Pierina, Joana, o amor e outros males, o bem-te-vi, o colibri, menino comprando tuim, Zig, Cachoeiro, Rio e Paris, está tudo lá, esperando a lua e os amantes da linguagem única de Braga: www.facebook.com/RubemBraga100Anos?fref=ts.

*Ana Karla Dubiela é jornalista e escritora. Pesquisadora da obra de Rubem Braga desde 2004. Especialista (UFC) e mestre (UFC) em Literatura e doutora em Literatura Comparada (UFF/RJ). E-mail: [email protected]

Fonte: O POVO


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