Célio Turino: a Lei Cultura Viva avança, mas há um longo caminho

A lei CULTURA VIVA venceu mais uma etapa em sua corrida de obstáculos, sendo aprovada por unanimidade na Comissão de Tributação de Finanças da Câmara dos Deputados. De autoria da deputada Jandira Feghalli (PCdoB/RJ), contou com relatório do deputado Osmar Junior (PCdoB/Pi) e agora segue para a Comissão de Constituição e Justiça, para, em seguida, ir ao Senado. É um caminho longo, mas que tem sido vencido passo a passo.

Por Célio Turino*

Como principal contribuição nesta etapa, ela propõe o Cadastro Nacional dos Pontos de Cultura e a simplificação nos processos de contrato e prestação de contas das entidades. Após sua aprovação definitiva caberá a regulamentação por parte do poder executivo. É aí que desejo contar uma história e apresentar algumas sugestões, que já podem ser providenciadas em paralelo, de modo a agilizar sua implementação.

Ouça na Rádio Vermelho

Jandira Feghali: É com políticas de Estado que fomentaremos a Cultura

Há que construir a plataforma para o Cadastro Nacional dos Pontos de Cultura e ele pode ser desenvolvido dentro da própria rede dos Pontos de Cultura, a partir de tecnologias em software livre e já experimentadas na própria rede. Entre 2004 e 2010 foram realizadas inúmeras ações de Cultura Digital, em todo país, nas áreas mais distantes, fossem em grandes centros ou quilombos e assentamentos rurais, houve mais de 80 Oficinas de Conhecimentos Livres e metareciclagem (desenvolvimento de hardwares e montagem de computadores novos a partir de sucata digital, programas de edição em software livre, plataformas de comunicação e registro), além de centenas de visitas e acompanhamento técnico em Pontos de Cultura com o trabalho de mais de uma dezena de Pontões de Cultura Digital.

Todo este trabalho acumulado, que envolveu milhares de pessoas, está à disposição. Em especial, para o tema do Cadastro dos Pontos de Cultura, destaco a Casa dos Meninos, no Jardim São Luis, zona sul de São Paulo. Eles desenvolveram uma plataforma de mapeamento dos Pontos de Cultura, permitindo o registro das atividades de cada Ponto, assim como de ferramentas abertas para gestão e prestação de contas. Tudo em software livre e disponível para consulta pública, inclusive para prestação de contas on-line. Será um grande avanço na gestão compartilhada Estado/Sociedade se este trabalho for reconhecido, respeitado e aproveitado.

Em particular, lembro-me das conversas que mantive com Cleodon Silva, conhecido como Macambira. Cleodon saiu do interior do Rio Grande do Norte rumo à São Paulo ao final dos anos sessenta e foi trabalhar como operário metalúrgico; em pouco tempo era um destacado militante nas lutas de fábrica e no Movimento de Oposição Sindical Metalúrgica (MOMSP), em plena Ditadura Militar. Fez História. História anônima, subterrânea, clandestina por vezes; menos afeito aos discursos em porta de fábrica, notabilizou-se como um organizador. Com o tempo ficou marcado pelos patrões e nunca mais conseguiu emprego como metalúrgico. Foi para o movimento popular, mais uma vez como organizador. Até que eu o encontro na Casa dos Meninos, quando lá estive para divulgar o primeiro edital para seleção dos Pontos de Cultura, em 2004, junto com Gilberto Gil, Paulo Miguez e tantos outros. De imediato ele se identificou com a proposta. Lembro-me que disse: “-Há trinta anos eu esperava por uma política pública que tratasse o povo da maneira com que você a apresentou”. Aconteceu o edital, enviaram a proposta e foram aprovados na primeira leva dos Pontos de Cultura. Depois não mais nos encontramos pessoalmente, mas por meio eletrônico nos comunicávamos com freqüência.

Ele falava das dificuldades na implantação do Ponto, dos entraves burocráticos, dos micro-poderes, das disputas internas que houve quando do acesso aos recursos públicos, da derrota que sofreram ao perder o controle da entidade e da continuidade do trabalho como Ponto de Cultura mesmo sem sê-lo oficialmente. Também me recordo das mensagens que ele enviava a cada pequena/enorme conquista: um menino que foi estudar numa escola técnica, outros e outras que entraram na faculdade, as bolsas de estudo que conseguira (na época ainda não havia ProUNI), isso em uma região conhecida pelo alto índice de mortes violentas de jovens. Parêntesis: o cemitério do Jardim São Luis é conhecido como o lugar de mais alta concentração de jovens mortos no mundo; quando escrevi minha dissertação de mestrado, redigi um capítulo sobre lazer (ou falta de) e violência, para tanto visitei esse cemitério diversas vezes e pude acompanhar os velórios silenciosos daqueles jovens mortos, em que as famílias nada diziam, apenas enterravam seu mortos, dispostos em uma vasta colina, antes coberta de Mata Atlântica agora substituída por estacas fincadas no coração de uma juventude perdida; por isso cada conquista relatada por Silva, como também era chamado Cleodon, o querido Macambira, era tão significativa; por algum motivo nunca contei a ele dessas minhas visitas em silêncio.

Com o tempo, perseverança e organização, Silva e os meninos e meninas do Jardim São Luis reconquistaram o comando da entidade e o Ponto de Cultura pode voltar a funcionar oficialmente. Nova fase, agora eles iriam aplicar todo seu conhecimento organizativo e tecnológico na implantação de seu Ponto de Cultura. E replicá-lo para outros, aplicando seu conhecimento no desenvolvimento de seu povo. Com ferramentas de georeferenciamento em software livre, mapearam as necessidades e recursos disponíveis para resolver cada problema, em cada família, em cada casa ou quebrada de seu bairro. Em pouco tempo sabiam dizer exatamente quantas crianças necessitavam de creches ou pré-escola, onde moravam, o que seu faziam (ou deixavam de fazer).

Empoderaram seu povo e assim ganharam voz no movimento por creches na cidade de São Paulo. E foram além, exercitaram o mecanismo do orçamento participativo e da transparência total das contas públicas na gestão de seu próprio Ponto de Cultura. Afinal, se o povo quer transparência, ética e eficiência, na gestão pública, cabe a esse próprio povo demonstrar como fazê-lo; e dar o exemplo, era assim que ele pensava. Quando o Ponto de Cultura Casados Meninos tornou-se Pontão de Cultura, iniciaram essa disseminação de princípios e tecnologia para os demais Pontos. A vontade era tanta que iniciaram os trabalhos antes mesmo de receberem a primeira parcela de recursos. Seguiram com o trabalho e Macambira, o Silva de pré-nome Cleodon, seguia alegre e feliz com sua luta silenciosa. Ano passado, Silva morreu, dormindo, em silêncio.

O Pontão de Cultura Casa dos Meninos também perdeu força com a descontinuidade e incompreensões por que passou o programa Cultura Viva ao logo dos dois últimos anos. Mesmo assim, os jovens ali formados seguem na defesa dos mesmos princípios generosos de Silva e sua luta pela emancipação popular. E a plataforma de gerenciamento de dados e controle de informações segue em desenvolvimento e agora leva o nome de Macambira, em homenagem ao seu mentor.

Pois bem, se há o currículo Lattes, homenageando nosso grande cientista César Lattes, por que não a Plataforma Macambira para o Cadastro Nacional dos Pontos de Cultura? E para além da justa homenagem, por que não transformá-la em uma plataforma de autoregistro, em que todas as entidades de cultura comunitária possam depositar toda sua história, seus planos de trabalho, aspirações, registros e prestações de contas? E fazer isso sem necessidade de chancela ou subordinação ao Estado, mas como ato de afirmação da própria autonomia. Claro que ainda assim haverá a necessidade de validação, mas ela pode acontecer via conselhos municipais ou estaduais de cultura, conselhos entre pares e outros mecanismos como os que se dão no preenchimento do currículo Lattes, em que é o próprio pesquisador quem o constrói.

A Plataforma Macambira poderia representar um marco na estrutura do relacionamento entre Estado e Sociedade, estabelecendo novos paradigmas de confiança, co-responsabilidade e auto-governo (na esfera da resolução dos problemas das comunidades a partir da potência das próprias comunidades). Tudo isso pode estar previsto na regulamentação da lei Cultura Viva. E mais. Ao servir de base para a seleção de Pontos de Cultura, os contratos seriam simplificados e poderiam ser firmados em agências da Caixa Econômica Federal, como acontece com o financiamento da Casa Própria, em que mutuários finalizam seus contratos na agência mais próxima. Com isso o aparato burocrático de controle do Estado, mormente ineficaz, poderá ser reduzido, pois essa ação será pulverizada em milhares de agências, distribuídas por todo país (o Ponto de Cultura selecionado recebe um certificado estabelecendo valores e parâmetros da ação e, de posse dele, vai à agencia bancária mais próxima e finaliza o contrato, “olho no olho”).

E os gestores públicos poderão se concentrar exatamente naquela que deveria ser a sua missão principal, que é a elaboração de políticas públicas e o acompanhamento de sua aplicação a partir de resultados e não por procedimentos. Menos papel e mais vida, essa é a questão. E mais ainda. Ao firmar o contrato, o Ponto de Cultura receberia um cartão, Cartão Cultura Viva (como acontece com os cartões para construção e reforma de moradia), com esse cartão pagaria suas despesas (lembro que os Pontos de Cultura recebem valores em pequena monta – R$ 60.000,00/ano, ou R$ 5.000,00/ mês; e aqui fica outra sugestão, já está na hora de um reajuste), de modo que o próprio extrato do cartão seria a prestação de contas. E tudo publicado on-line na Plataforma Macambira!

É isso. Simples, eficiente, barato e respeitoso, como deve ser o novo padrão de relacionamento entre Estado e Sociedade. Fica aqui a sugestão.

*Célio Turino é historiador, escritor e gestor de políticas públicas. Foi idealizador e gestor do programa Cultura Viva e dos Pontos de Cultura. Foi secretário de Cultura e Turismo em Campinas/SP (1990/92), diretor de Esporte e Lazer em São Paulo/SP (2001/2004) e secretário da Cidadania Cultural no Ministério da Cultura (2004/2010).

**Título editado pelo Portal Vermelho

Fonte: Revista Fórum