Anivaldo Padilha fala sobre a Comissão da Verdade

Matéria originalmente publicada no site do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, CONIC

O Brasil instituiu, em maio deste ano, 2012, a Comissão Nacional da Verdade (CNV). Considerado passo importante em favor daqueles que foram injustiçados anos de chumbo, o objetivo da Comissão é apurar violações aos Direitos Humanos praticadas por agentes públicos, ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Para falar sobre isso o CONIC foi conversar com Anivaldo Padilha, metodista, e que na década de 70, durante a ditadura militar, foi preso e torturado em São Paulo. Confira:

Em sua opinião, qual a importância da instituição da CNV?

Creio que o processo de redemocratização do Brasil poderia ser dividido em três momentos muito significativos, apesar de suas contradições. Como toda tentativa de identificar períodos históricos, reconheço de antemão que essa é uma divisão arbitrária.

O primeiro foi a luta pela Anistia no final da década de 1970. Como sabemos, o movimento pela Anistia mobilizou amplos setores da sociedade. Foi uma demonstração clara de que o Brasil não mais podia suportar o império do arbítrio e do terrorismo de Estado. O movimento forçou o recuo da ditadura, mas não teve forças suficientes para concretizar a vontade da maioria do povo brasileiro de uma anistia ampla, geral e irrestrita. O resultado foi a lei imposta pela ditadura a um Congresso manietado e sem autonomia. Foi uma anistia restrita e que não atingiu a todos os opositores do regime. Os chamados crimes de sangue não foram contemplados e muitos militantes, condenados por tribunais de exceção e sem direito amplo de defesa, continuaram presos. A ampliação só aconteceu posteriormente devido à pressão política e social.

O Segundo momento foi a luta pelas eleições diretas. O movimento “Diretas-já” adquiriu uma dimensão nunca antes vista no Brasil. Milhões de brasileiros e brasileiras, de todas as regiões e de todas as classes sociais, foram às ruas exigir o direito de escolher o presidente da República. Mais uma vez, a ditadura se sentiu acuada. E mais uma vez a vontade popular foi frustrada pelo acordo entre as elites, e a emenda constitucional foi derrotada no Congresso e setores da oposição se uniram a antigos apoiadores da ditadura para eleger um presidente civil indiretamente. Entretanto, apesar desse revés, o descontentamento com esse processo mostrou que não havia mais condições de adiar o fim da ditadura. Uma nova Constituição, com vários mecanismos democráticos e garantia de direitos foi elaborada e possibilitou avanços consideráveis, apesar de ainda com alguns limites, no plano dos direitos políticos, sociais, culturais e econômicos.

Creio que o trabalho da Comissão Nacional da Verdade pode marcar um terceiro momento. Semelhantemente aos períodos anteriores, a Comissão não é a que muitos aspiravam. Seu objetivo é investigativo e não punitivo. Entretanto, a Comissão certamente contribuirá para que a verdade sobre o período da ditadura civil/militar venha à tona de forma clara e inconteste, especialmente ao apontar os abusos e os crimes praticados à sombra do Estado. Apesar de não ter poder punitivo, a Comissão deverá apontar os responsáveis, diretos e indiretos, pelas graves violações dos Direitos Humanos, bem como as instituições que deram suporte político e financeiro. Ao cumprir seu papel, a Comissão dará uma enorme contribuição para o resgate da memória histórica para que possamos compreender o nosso presente e construir um futuro no qual aquele passado não mais se repita. Portanto, vejo a Comissão Nacional da Verdade como mais um passo importante para o avanço democrático.

E qual será a abrangência da Comissão?

A Comissão foi criada para investigar as violações dos Direitos Humanos ocorridas no período entre 1946 e 1985. É um período muito longo e o prazo para concluir seus trabalhos é muito curto (maio de 2014). Por isso, ela teve que estabelecer prioridades e decidiu se concentrar na investigação dos crimes cometidos durante a ditadura civil/militar, ou seja, de 1964 a 1985. Pelo que entendo, a CNV já estabeleceu grupos de trabalho para investigar o contexto que levou ao golpe de 1964, a estrutura de repressão criada pelo regime, violação dos Direitos Humanos, incluindo a torturas, mortes e desaparecimentos de membros da oposição, a repressão contra povos indígenas e população camponesas, a guerrilha do Araguaia, Operação Condor, que foi a cooperação entre as ditaduras do Cone Sul, brasileiros assassinados no exterior e estrangeiros assassinados no Brasil e, por último, o papel das igrejas durante a ditadura.

Como se pode ver, o campo de investigação é muito amplo e é por isso que a Comissão tem estabelecido convênios com centros de pesquisas e com organizações da Sociedade Civil para levar a cabo sua importante missão.

A Comissão vai contribuir para ampliar o debate sobre a ditadura em quais pontos?

Creio que uma das principais contribuições da CNV será fortalecer a discussão sobre o que os juristas chamam de Justiça de Transição. É um conceito que se refere a medidas que uma sociedade deve implementar após ter superado regimes ditatoriais. Em outras palavras, é a necessidade de remover a herança autoritária e substitui-la por uma nova configuração democrática. Nesse sentido, ainda temos muito que caminhar. Por exemplo, apesar de vivermos em um Estado de Direito, os Direitos Humanos ainda não são plenamente respeitados em nosso país. A tortura ainda é uma prática quase generalizada nas delegacias e nas prisões brasileiras. Ainda temos os assassinatos sumários de presos seguidos de ocultação de cadáveres. As nossas polícias militares parecem que ainda recebem formação para matar em vez de proteger os cidadãos. Parece que confiam mais no uso da violência ativa e reativa do que nas ações de inteligência, investigação e de prevenção do crime. Aliás, o próprio conceito de polícia militar é uma herança da ditadura. As PMs foram criadas como forças auxiliares das Forças Armadas no combate ao “inimigo interno” de acordo com a ideologia da Doutrina de Segurança Nacional e até hoje, depois de quase trinta anos do fim da ditadura, elas continuam intactas. Se no passado o “inimigo interno” eram os membros da oposição à ditadura, parece que hoje esse “inimigo” são os pobres do campo e os que vivem nas periferias das grandes cidades, em especial os jovens e negros. Nenhum governo no período pós-ditadura teve a coragem de propor e de implementar um novo conceito de polícia cidadã. A elite brasileira, apoiada pela grande mídia, ainda vê as questões sociais como caso de polícia e usa seu poder para demonizar e criminalizar os movimentos sociais. Um desafio dessa transição parece ser educar nossa elite para ser capaz de conviver com a democracia. Ao mesmo tempo, apesar de avanços na discussão sobre Direitos Humanos, essa não é uma disciplina obrigatória nas nossas escolas e isso é fundamental para a formação das nossas crianças e dos nossos jovens.

A lista de “entulhos autoritários”, como disse Ulisses Guimarães, é longa e os desafios para removê-los muito grandes. Entretanto, não podemos fugir deles se estamos realmente comprometidos com a construção e aprofundamento de uma cultura verdadeiramente democrática no Brasil. Minha esperança é de que na medida em que a Comissão Nacional da Verdade divulgue suas conclusões a sociedade tome consciência de que ainda temos presente entre nós vestígios muito fortes da ditadura e que essa consciência desperte o desejo, a vontade e o compromisso de superar nosso passado autoritário.

Há esperanças de que, no futuro, aconteça aqui no Brasil o que aconteceu na Argentina, ou seja, condenação para os culpados?

Espero [que] sim. O Supremo Tribunal Federal decidiu, em 2010, que a Lei de Anistia, imposta pela ditadura, esta concorde com a Constituição. Na verdade, o que me parece que está em jogo não é a constitucionalidade da lei e sim a sua interpretação. O acordo entre as elites que possibilitou a eleição indireta de Tancredo Neves, em 1985, incluiu a ideia de que a Anistia valeu para os “dois lados”. De acordo com essa interpretação a Lei foi também uma auto-anistia concedida pela ditadura. Entretanto, essa interpretação entra em choque com vários tratados internacionais, especialmente o Tratado Interamericano de Direitos Humanos, ao qual o Brasil aderiu livremente. Mais cedo ou mais tarde o STF terá que rever a interpretação que hoje é predominante entre setores poderosos da mídia e da elite política. Caso contrário, o Brasil provavelmente teria que romper com os tratados internacionais dos quais é signatário e isso geraria graves problemas para nós no âmbito internacional. Ao mesmo tempo, o Ministério Público Federal tem agido com vigor e apresentado denúncias contra torturadores notórios. E creio que as últimas decisões judiciais me dão motivos para ser otimista, pois a Justiça Federal no Pará e em São Paulo recentemente acatou as denúncias do MPF respectivamente contra o Major Curió por crimes relacionados à Guerrilha do Araguaia e contra o Coronel Brilhante Ustra, ex-comandante do DOI/CODI em São Paulo.

Independentemente das discussões políticas a esse respeito, creio ser importante dizer que impunidade em relação a práticas de tortura e às graves violações dos Direitos Humanos durante a ditadura só servem de encorajamento para os torturadores de hoje oa quais se sentem seguros porque creem que não serão punidos.

Quero enfatizar que, para mim, a possível punição dos agentes do Estado, de qualquer escalão dos governos da ditadura, que cometeram crimes de violação dos Direitos Humanos não é um ato de vingança, mas, sim, de justiça. Eles rasgaram a Constituição, depuseram um governo democraticamente eleito, impuseram um regime de terror, estabeleceram o uso de torturas como política de Estado, assassinaram e ocultaram os corpos dos mortos. Não cometeram crimes somente contra pessoas que lhes fizeram oposição. Cometeram crimes contra a sociedade e por esses crimes devem ser julgados. Não podemos negar a eles o que eles nos negaram, ou seja, devem ser investigados e, se for o caso, indiciados e julgados por um tribunal do Estado de Direito e com todas as garantias de defesa como é próprio do devido processo.

Tenho esperança de que em algum momento chegaremos lá, mas sei que tudo isso vai depender da participação das organizações da Sociedade Civil. Tenho dado muitas palestras em várias regiões do Brasil e sinto que há um despertamento de vários setores da sociedade, especialmente entre os jovens. E isso fortalece o meu otimismo.

Há um mito de que a ditadura no Brasil foi “branda”, você concorda com isso?

Não concordo. O mito da “ditabranda” foi inventado pela “Folha de São Paulo” há cerca de dois anos e acompanhada por outros órgãos de comunicação (clique para ler sobre a "ditabranda"). Foi uma tentativa, a meu ver frustrada, de comparar as outras ditaduras latino-americanas com a brasileira. Não se pode comparar ditaduras pela contabilidade de cadáveres que elas produziram. Se a ditadura argentina assassinou mais pessoas do que a ditadura brasileira foi porque a oposição lá foi muito mais forte e massiva e não porque a nossa ditadura foi “mais humana” ou “mais branda”. Quem passou pelos porões da “nossa” ditadura sabe muito bem o quão violenta ela foi e que de “branda” não teve nada. Minha suspeita é que a grande mídia, ao tentar amenizar a ditadura está, na verdade, tentando se isentar ou diminuir a sua responsabilidade.

Que recado você gostaria de deixar para os nossos leitores?

Quero deixar um apelo. É provável que muito leitores já tomaram conhecimento, pelos meios de comunicação nacional, de que a Comissão Nacional da Verdade decidiu investigar o papel das igrejas durante o regime militar (leia mais sobre o assunto). Para isso, criou um Grupo de Trabalho formado por pesquisadores ligados a diversas igrejas para cumprir essa missão. Tenho a honra de participar desse grupo como coordenador juntamente com o diplomata Prof. Paulo Sérgio Pinheiro. Sabemos que as igrejas, assim como outras instituições brasileiras, tiveram um papel ambíguo e contraditório durante a ditadura. Ao mesmo tempo em que muitos setores das nossas igrejas se colocaram e lutaram contra a ditadura, outros setores infelizmente se omitiram e outros ainda colaboraram com os órgãos de repressão. O objetivo do GT é apurar todos esses aspectos e para isso vamos precisar do apoio e da colaboração de todas as pessoas e organizações das nossas igrejas no sentido de nos enviar informações que sejam relevantes para o nosso trabalho.

Creio que, como igrejas, não devemos nos esconder. Ao contrário, creio sinceramente que temos o dever de dar um testemunho inequívoco do nosso compromisso com a construção da paz e da justiça em nosso país. E para isso devemos estar preparados e preparadas para nos apresentar abertamente perante a nossa sociedade e, ao lado de homenagear a todas as pessoas que por sua fé se engajaram na oposição à ditadura, pedir também perdão pela nossa omissão, negligência atos que contribuíram para a legitimação e consolidação do regime autoritário.

Creio que Deus nos chama para esse ato público de contrição que pode também servir de exemplo para outros setores da sociedade que tiveram comportamentos semelhantes.

Fico contente porque creio que o primeiro passo nessa direção já foi dado por meio do comunicado do CONIC (clique aqui para ler) em apoio à decisão da Comissão Nacional da Verdade de investigar o papel das igrejas.

Se você quiser falar com o Anivaldo, envie um e-mail para: apadilha@distopia.com