Mário Magalhães fala sobre Carlos Marighella

 Autor de Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo, o jornalista Mário Magalhães fala sobre a história do guerrilheiro baiano cuja vida conseguiu ser mais espetacular do que os mitos acerca de sua figura.

Mesmo já tendo sido considerado publicamente o inimigo número um da ditadura militar, pouco se fala sobre a vida de Carlos Marighella. A foto do seu corpo cravado de balas dentro de um fusca até se repete nos livros de história, mas sabe-se quase nada sobre sua trajetória ou seu protagonismo em momentos importantes da história brasileira. Já próximo do apagar de luzes de 2012, alguns esforços conjuntos tentam lançar novas luzes sobre essa questão.

Junto com o documentário Marighella, da cineasta Isa Ferraz, sobrinha do homenageado, o jornalista carioca Mário Magalhães entrega, depois de nove anos de pesquisa, a biografia Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo. Relato tão frenético quanto a própria vida do guerrilheiro baiano, a biografia de mais de 700 páginas será lançada amanhã, no Centro Dragão do Mar, como parte da programação da Semana Marighella, que conta ainda com uma exposição (já aberta) e a exibição do documentário de Isa (dia 23).

Herói para uns, bandido para outros, o fato é que Marighella foi figura emblemática da luta contra a ditadura. À frente da Aliança Libertadora Nacional (ALN), ele bateu de frente com o regime e foi perseguido por ele até a morte, em 1969, durante uma emboscada realizada na Alameda Casa Branca, em São Paulo. Muitas histórias nasceram naquele 4 de novembro de 1969. Que Marighella teria uma arma na pasta que trazia consigo, que morrera atirando, que teria sofrido diversas torturas nas muitas vezes que foi preso.

Certo de que teria que dissipar muita fumaça que ainda permanece sobre a história de seu biografado, Mário Magalhães se lançou ao desafio de recontar a história de um filho de Oxóssi que se dizia ateu. Em entrevista exclusiva ao jornal O POVO, de Fortaleza, o autor fala sobre seu percurso ao longo da produção da biografia que chega agora às livrarias. Apoiado por dezenas de documentos, entrevistas e livros, Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo busca sobriedade ao lidar com os fatos e os mitos, oferecendo ao leitor somente o que pode ser comprovado oficialmente. “Sempre, numa reportagem ou numa relação de amor, ficarão perguntas. Mas as principais eu consegui responder. Por dever de transparência com o leitor, informei a origem de cada informação relevante ou interessante”, orgulha-se.

Você dedicou muitos anos à pesquisa sobre o Marighella. O que o levou a esse trabalho? Qual a sua relação com o personagem?

Foram nove anos de trabalho, de 2003 a 2012, dos quais cinco anos e nove meses com dedicação integral ao livro. Nascido na primeira semana de abril de 1964, a do golpe de Estado que mudou o Brasil, eu tinha 39 anos em 2003. Repórter por vocação e ofício, queria produzir uma reportagem de fôlego, sem as amarras de tempo e espaço próprias de uma redação de jornal. Resolvi contar uma vida de tirar o fôlego. Não encontrei personagem melhor do que Carlos Marighella (1911-69). Entrevistei 256 pessoas e consultei mais de 70 mil páginas de documentos, boa parte secreta, de arquivos públicos e privados de Rússia, República Tcheca, Estados Unidos, Paraguai e Brasil. A síntese que elaborei sobre meu personagem foi a seguinte: é legítimo amar ou odiar Marighella. Mas é impossível ficar indiferente à sua vida fascinante.

Um dos desafios da biografia foi encontrar comprovações para os fatos, já que parte da documentação do Marighella se encontrava ou na clandestinidade ou em arquivos secretos. Alguma pergunta sua ficou em aberto por falta de comprovação?

Sempre, numa reportagem ou numa relação de amor, ficarão perguntas. Mas as principais eu consegui responder. E com tantos detalhes que as notas sobre fontes, ao fim do volume, somam 2.580. Por dever de transparência com o leitor, informei a origem de cada informação relevante ou interessante. Por exemplo, como eu poderia saber que o sangue que escorreu até a boca de Marighella, quando ele foi baleado num cinema em 1964, era adocicado? Uma nota esclarece. Por outro lado, descartei os números de referência sobre fontes, para não prejudicar a fluência da leitura. Escrevi a biografia com os ingredientes de um romance: ação, aventura, drama, humor, paixões, amores, ideias, mistério, espionagem, histórias e a história de quatro décadas trepidantes do Brasil e do mundo (1930 a 1960). A diferença na comparação com um romance é que todos os fatos descritos no livro são escrupulosamente reais, como evidenciam as 2.580 notas sobre fontes.

Terrorista, guerrilheiro e poeta são algumas palavras ligadas ao nome de Marighella. Como essas três porções se intercalavam na vida dele? Qual o maior equívoco que ainda persiste sobre o mito Marighella?

Há farta mitologia tanto contrária quanto favorável a Marighella. Depois de nove anos, asseguro que a trajetória dele foi muito mais espetacular do que todas as fantasias acerca de sua vida. O livro esclarece em pormenores o que significaram terrorismo, guerrilha e poesia para Marighella.

Fazendo um balanço sobre os entrevistados, quais as sensações mais recorrentes entre eles quando se fala no nome de Marighella?

Entrevistei amigos e inimigos. Todos falaram de coragem, e não de covardia.

Mesmo que exista uma longa produção de filmes e livros sobre a ditadura, pouco se fala, principalmente nas escolas, sobre nomes como Lamarca, Gregório Bezerra e Marighella. O que isso revela sobre o nosso país?

O entulho autoritário que herdamos da ditadura militar é muito mais vigoroso do que aparenta. Enquanto Marighella for barrado dos livros escolares, ele continuará a ser um brasileiro maldito. Imagine o que significaria eliminar dos manuais de história Carlos Lacerda, um dos mais estridentes anticomunistas do século XX no país: um crime de desonestidade intelectual. É isso que ocorre em relação a Marighella. Não defendo que as publicações didáticas o defendam, nem que o condenem. Mas que contem sua história, contribuindo para que cada um tire as suas próprias conclusões.

 Um dos temas que você esclarece no livro é a respeito da inserção de Marighella no cenário internacional. Que importância seu nome ainda tem fora do País?

Quarenta e três anos depois de sua morte, Marighella é muito mais conhecido no exterior do que em seu próprio país. Seus escritos ainda inspiram grupos contestatórios e revolucionários planeta afora. Acadêmicos em todos os continentes estudam suas obras. No ano de 2012, isso começa a mudar. Chamam a atenção quatro novidades: o filme “Marighella”, de Isa Grinspum Ferraz; o clipe dos Racionais MCs sobre o guerrilheiro; a biografia que estou lançando depois de nove anos de trabalho insano; e a música de Caetano Veloso (”O comunista”) inspirada em seu conterrâneo Marighella, que será lançada no fim deste mês no disco “Abraçaço”.

Que efeitos o lançamento de uma biografia e um filme sobre Marighella podem ter sobre a sociedade brasileira?

O Brasil não conhece o Brasil. Só tem a ganhar se começar a se conhecer. Veja o exemplo do Ceará. São numerosos os cearenses, muitos injustamente pouco lembrados, que atravessam o livro que escrevi: Juracy (Montenegro) Magalhães, interventor da Bahia desde 1931 e primeiro inimigo político de Marighella; David Capistrano, deputado comunista em Pernambuco, assassinado pela ditadura militar; Miguel Arraes, cuja carta secreta de dezembro de 1966 para Marighella, enviada da Argélia, descobri e expus no livro; Dom Hélder Câmara, destinatário de uma carta de Marighella em 1969, com pedido de ajuda para a luta armada; Frei Tito de Alencar, membro de um grupo de frades dominicanos que se integrou à guerrilha comandada por Marighella e que viria a se tornar um mártir brasileiro; marechal Humberto de Alencar Castello Branco, primeiro presidente da ditadura instaurada em 1964. E muitos outros, que ressurgem em carne e osso na biografia de um homem ao lado de quem lutaram ou contra quem combateram.

Na sua opinião, o que representa a recente anistia de Marighella?

A anistia aprovada em dezembro de 2011 e agora publicada no “Diário Oficial” encerra um ciclo iniciado em 1996. Naquele ano, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos concluiu que as forças de segurança da ditadura poderiam ter prendido Marighella vivo, em vez de assassiná-lo. E ainda nem se sabia que ele estava desarmado ao ser fuzilado, como revelo agora.

Que importância a figura do Marighella tem na história do Brasil recente?

Você já reparou como as ideias e os atos de Marighella, morto em 1969, ainda provocam tanta paixão e ódio? Talvez porque não sejam parte de um passado remoto, mas inspirem simpatia e antipatia renovadas, de novas e velhas gerações. Marighella, de fato, não é um personagem enterrado pelo tempo. Talvez ele nunca tenha provocado tanta controvérsia como agora.

Serviço

Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo
Quando: lançamento do livro amanhã (22), às 20h
Onde: Hall do Teatro Dragão do Mar (Rua Dragão do Mar 81 – Praia de Iracema)

Fonte: O POVO