Romero: 90 Anos de Saramago, um testemunho de amor e sabedoria

O documentário “José e Pilar” do português Miguel Gonçalves Mendes é muito mais que um documentário no sentido tradicional que conhecemos. O filme registra um momento da vida do escritor José Saramago, mais precisamente os últimos anos de sua vida, entre 2006 a 2010. O diretor teve o privilégio de acompanhar cotidianamente a vida do escritor durante um tempo razoável e de ter um convívio direto e bem livre com o casal Saramago e Pilar.

Por Romero Venancio*

Filma as viagens (que são muitas e causadoras da enfermidade do escritor quando estava começando a escrever “A viagem do elefante“), a vida privada do escritor e sua mulher, as divergências políticas do casal, as festas de aniversário, as homenagens, o casamento dos protagonistas na Espanha… Até aqui não se percebe nada de extraordinário num documentário destes. Um roteiro tranquilamente previsível e normal sobre a vida de uma “celebridade”.

Aqui também começa o engano. O filme, já na sua forma mostra algo muito diferente no gênero: uma fotografia natural e apurada, que se articula perfeitamente com as falas dos personagens e com o ambiente em que vivem ou por onde andam ao redor do mundo. As músicas (Jazz, Música flamenca, Fado, Música clássica) foram muito bem e delicadamente escolhidas, nos fazendo lembrar um filme de Almodóvar (Augustin Almodóvar é um dos produtores do filme) e o mais importante na forma filmica: há momentos em que vemos ou acreditamos ver que o documentário esta em preto e branco, principalmente nos momentos mais reflexivos ou melacólicos do escritor.

A forma do filme quer revelar e consegue um Saramago “humano, demasiado humano”, falando coisas comuns ou afirmando sua descrença em Deus (são sempre momentos sublimes da película); falando de política ou de família; falando de livros ou de jornalistas sem criatividade (o que é quase um pleonasmo!); recebendo homenagens importantes ou caminhando nas ruas, vemos sempre um escritor em busca da simplicidade da vida.

Dentre vários temas possíveis de explorar num rico documentário como esse, dois me chamaram bastante a atenção: Deus e o Amor. Parece coisa pieguista e beata tais temas, mas na película ganham dimensões “metafísicas” e humanas de uma proporção grandiosa e inteligente, alcançando aquilo que os primeiros filósofos chamavam de “sabedoria”. Todos aqueles que acompanham a vida e a obra de Saramago sabem do seu ateísmo declarado. Para ele é inútil e desnecessário a existência de Deus e isto não o incomoda mesmo quando vai ficando mais velho e mais perto da morte. No filme ele afirma categoricamente que pretende morrer coerente com o que acreditou ou com o que não acreditou.

O que mais me chamou a atenção nessa temática bem presente em vários momentos do filme foi algo como uma espécie de “ateísmo místico” nas falas do escritor. Paradoxal isto! Sem dúvida, mas toda mística é por natureza paradoxal. Saramago acredita num sentido para a vida (sempre criticou os niilismos contemporâneos de toda ordem) dado por nós mesmos e não tem preocupações existenciais em céu ou inferno. A vida para ele é sagrada. Porém, o deus das Igrejas com seus pecados, repressões, censuras, perseguições, vaidades e com seus sacerdotes e pastores de práticas opulentas e adoradores de dinheiro não pode despertar nenhuma fé religiosa em Saramago.

O que para dois cristãos que conheço (Alder Julio Calado e Rolando Lazarte), as palavras aparentemente amargas do escritor para com as igrejas cristãs em nada muda a fé que eles conhecem e praticam no dia-a-dia. Ousaria (sem consultá-los sobre o assunto) dizer que até concordam com o escritor comunista: O deus que Saramago negou, eles também negam, mas há um Deus que Saramago não negou porque não o conheceu que eles afirmam por convicção e posicionamento histórico e que é Deus da vida e da misericórdia.

O deus de Saramago é mais um ídolo celebrizado pelos poderosos das igrejas. Deus ou é um afirmador da vida plena ou torna-se “ópio do povo”, sem sentido para uma experiência de fé mais profunda e marcada pelo “principio misericórdia”. O deus que Saramago negou é o espírito de um mero jogo de poder temporal. Como bem afirmou o próprio escritor num determinado momento do filme: “Este deus das religiões do poder é uma criação ideológica”.

Saramago talvez não sabia, mas sempre houve uma tradição mística e séria no Cristianismo que afirmou o mesmo que ele em diversos momentos da história das igrejas ocidentais. A obra de Saramago foi um verdadeiro testemunho da luta por justiça e sempre foi uma “arma de combate” contra todas as formas de opressão nesta terra. Quereis vós cristãos e religiosos de toda sorte testemunho mais alto e sublime que este?

No que diz respeito ao amor, a centralidade é Pilar Del Rio. Mulher/personagem de Saramago e protagonista da película. Em uma das conferências últimas do escritor no Brasil, notamos uma afirmação lapidar: “Se Pilar não tivesse existido na minha vida, eu teria morrido mais velho”. Percebe-se no cotidiano revelado no filme a importância definitiva dela na vida do escritor. Percebe-se ainda que há um “amor típico da maturidade” nas palavras e afetos de Saramago em todo o momento que aparecem juntos e que é este amor que nos resgata da solidão de nós mesmos e nos prepara para os últimos e dificeis momentos neste mundo.

Em nenhum momento do filme a questão da diferença de idade dos dois é colocada em questão. Não é preciso tal coisa quando se ama e quando se carece de alguém tão precioso. Idade vira algo irrelevante. Daí podemos ler uma sabedoria final como um legado para as gerações presentes vivida por Pilar/Saramago: “Esses moços, pobres moços”, preparem-se para amar na maturidade e não para ficar sós… Talvez seja esta a última lembrança que levamos deste triste /alegre mundo e, quem sabe, sejamos um transeunte agradável no universo. O filme nos demonstra que Saramago morreu onde queria e com quem queria. A isto o filósofo Epicuro chamaria de “morte tranquila”.

*Romero Venâncio é docente do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe.

Fonte: Revista Rever.