Flávio Aguiar: O significado da reeleição de Barack Obama

Enquanto eu redigia esse artigo, a apuração na Flórida continuava embaçada. Mas Barack Obama já estava reeleito. Não só isso: tinha uma pequena vantagem sobre Romney. Mesmo que Obama viesse a perder neste estado, esta situação, por si só, indica alguma mudança no panorama político norte-americano.

Por Flávio Aguiar, em Carta Maior

Claro: Barack Obama está longe de ser o presidente “dos nossos sonhos”. Mas sem dúvida Mitt Romney na Casa Branca seria um pesadelo.

Entretanto o mais importante é tentar ver o país por detrás do véu eleitoral – ainda mais um véu tão espesso quanto este da polarização entre democratas e republicanos no establishment norte-americano.

O país que se vislumbra é o de uma sociedade profundamente dividida. E os termos da divisão não são muito diferentes daqueles que têm vigência em muitos outros países, da Europa submergindo na sua própria crise à América Latina emergente em termos sociais, políticos e econômicos.

De um lado estão aqueles que defendem uma intervenção mínima do Estado na regulamentação da economia e na criação de postos de trabalho. Defendem redução de impostos para os mais ricos e para os ganhos de capital, com a visão de que isso favorece a “atividade econômica”. Os que contabilizam investimentos sociais como “gasto público”. Do outro, os que defendem uma interveção minimamente mais robusta do Estado na geração de empregos, com um sistema de taxação que pelo menos não penalize a classe média e os mais pobres.

Outro ponto que marcou essa eleição também é compartilhado com as sociedades européias, e se refere ao tratamento dos imigrantes. De um lado estão aqueles que defendem uma política mais xenófoba e agressiva no que se refere à imigração; do outro, os que defendem uma política mais tolerante. De ambos os lados dessa questão encontram-se os que mantém uma das duas posições em interesse próprio. Mas também há aqueles que encaram a questão de um ponto de vista mais ideológico: de um lado os que vêm como fundamental uma defesa da “integridade” cultural, nacional, religiosa, ou outra; e do outro os que defendem uma maior abertura à multiculturalidade e à mixagem social, naqueles mesmos campos do espectro espiritual de uma nação, tanto do ponto de vista intelectual quanto do coletivo.

Aliás, sublinhe-se que este último tópico – tratamento dispensado aos imigrantes – foi decisivo nesta eleição norte-americana, segundo vários analistas internacionais, em diferentes mídias. Em 2008 um dos fatores apontados para a vitória de Barack Obama foi sua catalização do voto jovem. Desta vez, muitas análises apontam para o fator decisivo do voto chamado de “latino”, ou seja, dos imigrantes hispano-americanos e de seus descendentes.

Segundo o instituto de pesquisas Pew, há 24 milhões de eleitores “latinos” nos Estados Unidos, e eles estão se tornando rapidamente a maior “minoria” no país, num contexto em que dentro de duas décadas as “minorias” constituirão, todas juntas, a “maioria”. Segundo a estimativa do mesmo instituto, 71% desse voto “latino” foi, desta vez, para Barack Obama, e apenas 27% para Mitt Romney, o que provavelmente decidiu a votação em vários estados, inclusive no estado-chave de Ohio, em que o candidato republicano precisava vencer para ter alguma chance de vitória na contagem geral.

Também deve-se ver aí uma das razões para essa nova situação de equilíbrio que se desenhou na Flórida, onde a geração de “latinos” anti-castristas, formada por aqueles que fugiram da Revolução Cubana e de seus descendentes imediatos está vendo seu espaço político parcialmente ocupado por uma terceira geração que tem outras preocupações, outros compromissos e também outros desenhos ideológicos motivadores.

Se nesta eleição pode-se apontar um perdedor além de Mitt Romney, trata-se do grupo Tea Party. Esse agrupamento de extrema-direita apostou tudo em ocupar o espaço interno do Partido Republicano para bloquear o espaço externo com o objetivo de derrotar não só Obama (apontado pela retórica ridícula do grupo como um “socialista”) mas todo e qualquer princípio ou prática que lembrem, mesmo que de longe, algo semelhante ao New Deal.

Os membros desse grupo certamente alegarão que a derrota de Romney se deve à “desmotivadora” aproximação deste com o “centro”. Podem estar atirando num alvo e acertando em outro. Porque não resta dúvida de que, mantendo-se alinhado na extrema-direita norte-americana (com a indicação, por exemplo, de Paul Ryan como vice), Mitt Romney terminou por tornar-se, ressalvadas as devidas proporções, uma espécie de José Serra ao norte do Rio Bravo, procurando, no final, apresentar-se de modo camaleônico, assumindo cores díspares em seu discurso de acordo com o momento e a circunstância. Isso contribuiu mais para afastar correligionários do que para atrair eleitores indecisos.

Não se deve desprezar o alinhamento de personagens, grupos e setores tradicionais do establishment norte-americano. Neste sentido, Barack Obama também saiu-se melhor do que Romney. Obama conseguiu de um certo modo alinhar atrás de si o conjunto do establishment democrata, sendo a ponta desse iceberg a adesão à sua campanha de Bill Clinton (talvez tendo em vista também uma possível eleição de Hillary daqui a quatro anos). Clinton, simbolicamente pelo menos, traz consigo setores do sindicalismo corporativo norte-americano. Já Romney enfrentou defecções graves em seu campo, como a do governador Chris Christie, de Nova Jersey, depois do desastre do furacão Sandy, e do general Colin Powell, tradicionalmente eleitor republicano (mas que já apoiara Obama em 2008).

Mas também não se deve perder de vista as transformações e tensões que estão redefinindo o desenho interno da sociedade norte-americana.