Contradições geridas pelo Governo e pelas organizações de massa

Vivemos um momento de aproximação política em torno de um conceito de democracia
que tem sido salutar no combate aos preconceitos, sobretudo raciais, contra as mulheres,
os idosos, as crianças, os homossexuais e os portadores de necessidades físicas.

Por Zillah Branco*, para o Vermelho

Somam-se as vozes de professores de economia e política, que sempre defenderam o
sistema capitalista, afirmando ser a democracia, a única saída para a crise. Agora citam
Marx como autor de um método de análise insuperável apesar de continuarem anticomunistas
como sempre foram. Substituem a referência ao proletariado, para considerarem o cidadão e não o trabalhador. É uma formula social-democrata que abre caminho para alianças sem supor a luta de classes.

O Brasil tem investido exemplarmente na formação de uma nova consciência de
cidadania comprometida com a defesa intransigente de direitos iguais na inclusão social.
Tanto os programas de ação política emanados do Governo, como as ações concretas
organizadas pela participação popular e militante que se multiplicam na base formando
cursos para jovens nas favelas, cooperativas de artesãos rurais, micro-empresas nas
periferias das grandes cidades, grupos de músicos ou esporte para atraírem meninos de
rua para uma função social, e tantas outras formas de organização que levam os
brasileiros antes marginalizados a fazerem parte do povo com consciência dos seus
direitos de cidadão, convergem no sentido da inserção nacional e do desenvolvimento.

Governo e movimentos de base, no Brasil, são dois pólos com o mesmo objetivo, ambos
sabendo que a distribuição de renda ainda favorece uma elite que acumula riquezas,
defende a propriedade privada e os seus negócios voltados para o lucro, a competição
com os seus pares nacionais ou estrangeiros e controlam o sistema financeiro aliados aos
seus parceiros multinacionais. Ambos sabem que o sistema é capitalista, subordinado ao
grande capital, e que há um grande caminho a ser feito com alianças para superar a
miséria e o atraso que em cinco séculos negou a cidadania à maioria dos brasileiros.

A partir de um movimento militante, de várias tendências políticas, essas ideias
humanistas, de levar a democracia à prática em todos os momentos da vida social, foram
produzindo os melhores agentes formadores que encontraram nas organizações de
comunidades e municípios, onde existiram condições democráticas mesmo durante a
ditadura e sob governos que ignoraram as necessidades populares de desenvolvimento,
condições para semearem o caminho que foi adotado pelo Governo brasileiro desde
2002. Hoje, através dos programas televisivos NBR, Escola e Saúde, Senado, Câmara e
Justiça, qualquer pessoa pode reconhecer que o atendimento social no Brasil está sendo
trabalhado a partir de princípios democráticos que humanizam a prestação dos serviços
públicos em todo o território brasileiro, enfrentando a enorme diversidade geográfica e
cultural que caracteriza as populações locais.

A implantação desta nova tendência histórica, democrática, depende do compromisso de
todas as forças sociais que, naturalmente, apresentam pontos de vista diferentes devido
aos seus interesses sociais e políticos específicos. Coincide com o despertar de vários
grandes empresários para os riscos de destruição da natureza e das populações que
fornecem ou consomem os seus produtos, anulando o mítico poder do "mercado livre". A
crise do sistema clarificou para muito empresários que as multinacionais devoram os
parceiros mais fracos e que a sua produção depende dos trabalhadores preparados e
alimentados e de populações com poder aquisitivo para dinamizarem o consumo. Um
Estado com instituições organizadas, que vence a miséria do seu povo e defende a
independência e autonomia da Nação, é um esteio para a sua consolidação e a única
defesa contra os abusos imperialistas. Descobrem que a cidadania cerra fileiras e que o
nacionalismo fortalece os laços patrióticos em todo o território brasileiro. A conjunção dos
valores humanistas, cidadãos, ecológicos, uniu os brasileiros ricos e pobres que têm em
mira a produção e o trabalho para garantir a independência.

Orgulhosos do seu espírito realista e prático, os empresários de sucesso, sem aceitar a
ideologia que considera em primeiro plano a sobrevivência e o desenvolvimento do ser
humano, recomendam ao Governo (como fez Jorge Gerdau, grande proprietário de
empresas siderúrgicas) aperfeiçoar a gestão dos serviços públicos e a educação da
população tendo em vista o aumento da produtividade que concorre com os demais
países. O seu apoio e as recomendações que faz para que o Brasil tenha uma
governança competente, são de grande valia apesar de circunscrever o seu ponto de
vista aos objetivos empresariais da produção econômica. O seu êxito empresarial ensina
métodos úteis "para fazer mais com menos" , como disse.

O mesmo fenômeno – de utilizar um conceito importante para a evolução social como uma
forma de degrau para aperfeiçoar o sistema capitalista, ou como máscara populista
quando há ambição eleitoral – ocorre com a apregoada defesa da natureza que hoje se
expande mundialmente. Há empresários que honestamente percebem a importância da
economia sustentada cujos interesses estão ligados indissoluvelmente com a
sobrevivência do planeta, enquanto que outros não se inibem de usar a propaganda
enganosa de produtos que recebem um atestado falso de "ecológico".

Nos Estados Unidos surgiu uma séria denúncia contra o "green washing", divulgada por
Bret Malley que integra um conjunto de profissionais ligados ao setor da comunicação,
que tem feito um trabalho de denúncia dos crimes políticos cometidos dentro do sistema
no seu pais. A TV globonews, com a vela que acende a Deus, acaba de divulgar
("Cidades e Soluções" 03/09/12) a denúncia feita por Malley e as analises que já são
feitas no Brasil apontando as empresas que se dizem falsamente "verdes" e são
fiscalizadas pelo CONAR que classifica a fraude como "propaganda enganosa". Assim,
separam, entre os empresários, os que realmente defendem o planeta dos que cuidam
apenas dos seus bolsos.

Governança e gestão têm diferentes responsabilidades

O uso dos conceitos, tanto de valor democrático como de ecológico, merece ser
aprofundado para distinguir os que têm a intenção da fraude (como mostra Malley em
entrevistas com empresários que compram falsos certificados para tornar "verdes" os
seus produtos nocivos), dos que acreditam honestamente nas qualidades anunciadas. No
caso da democracia não é possível uma análise física comprovativa da inadequação do
método proposto para a sua viabilização quando a intenção é enganar. As divergências
são demonstradas com recurso a informações históricas complexas e controversas,
fundamentadas ideologicamente.

Este conhecimento, da organização do trabalho e da gestão de recursos, recomendado
por Gerdau, faz parte da cultura dos povos, sobretudo na vida rural e comunitária
tradicional, sem o que os seres humanos não teriam sobrevivido com as tremendas
carências que sempre os cercou. A vida urbana e o poder dos mercados, de trabalho e de
consumo, apresentados paternalísticamente como generosidade das elites, é que diluiu
esta percepção dos indivíduos que esperam que as estruturas, empresariais e do Estado,
assegurem a sua formação e a organização da sua vida. Na vida doméstica e mesmo nas
brincadeiras das crianças a disciplina da organização e a gestão dos recursos é essencial
para a sua continuidade.

Ao nível de políticas sociais sob um regime democrático, a organização e gestão familiar
ou empresarial combatem as angústias geradas pelo consumismo, ensinam o caminho da
reciclagem e da poupança para a criação de novos meios de produção e da investigação
que anima a criatividade. Tais ensinamentos deverão estar no conteúdo de todos os
níveis da educação escolar e cidadã.

Um empresário que não reduz o seu pensamento à busca apenas do lucro, que "tem uma
utopia", como afirmou Gerdau no Forum de Políticas Públicas organizado pelo Governo
Dilma, tem o ponto de vista de uma elite, necessariamente conservador do seu status,
mas mantendo "uma inconformidade que promove o desenvolvimento". Será parceiro de
programas democráticos eficientes que beneficiem a formação de profissionais que têm
por meta a excelência na produção.

Mas, gestão empresarial, por mais democrática que seja, não é equivalente à da
governação nacional. O conceito de democracia não se reduz à busca da eficiência do
trabalho, há outras preocupações de um Governo que ultrapassam a meta do
desenvolvimento econômico, principalmente em um país que sofreu atrasos no seu
desenvolvimento por mais de quinhentos anos de exploração por forças externas,
colonialistas e imperialistas. Tem objetivos militantes que apontam um ideal a ser
construído.

Os empresários não incluem nas suas preocupações com a educação a solução de
problemas comuns a uma família que sobrevive com salário mínimo ou pouco mais,
carências alimentares, de roupas adequadas, de condições de habitação, de acesso a
tratamentos médicos, à formação cultural, ao lazer, ao respeito social por uma elite
egoísta e exploradora que usa os mais pobres como escravos. E todos estes problemas e
muitos mais, terão de ser resolvidos ao mesmo tempo em que se organiza o Estado com
capacidade de gestão e consciência de cidadania. Os que defendem um sistema
democrático, tendo pontos de vista diferentes, conforme as condições em que vivem e os
objetivos imediatos das suas tarefas produtivas, deixam de perceber as contradições que
o enunciado vago do conceito de democracia, assim como de ecológico, encerra.

Os programas de educação de base desvendam contradições ainda existentes nas
políticas públicas do Governo que precisam ser discutidas na sociedade democrática.
Assim é o estímulo ao consumismo popular, com a oferta de créditos facilitados e redução
de impostos para escoar os produtos comercializados (por exemplo a venda de carros e
da linha branca de eletrodomésticos em 2012), que o próprio Ministério da Fazenda
lançou. Os pedagogos e psicólogos vêm o consumismo como uma forma de vício
derivado de ansiedade patológica que merece tratamento médico-social para que o
indivíduo não perca o seu auto-controle pondo em risco a gestão dos seus recursos e o
sacrifício de escolhas mais importantes para a sua vida. Este é apenas um dos muitos
exemplos de contradição.

As contradições em todos os serviços públicos institucionalizados estão sendo apontadas
pelos movimentos sociais e os estudiosos das matérias específicas, para que sejam
encontradas soluções que não recaiam sobre as camadas mais pobres da população. No
âmbito judicial são reconhecidas as contradições entre leis (cuja vigência é as torna
negativas hoje) que nasceram em outros contextos históricos, quando não existia a
exigência da democracia apresentada pela sociedade. Em todos os níveis do sistema
judicial assistimos ao permanente debate fundamentado no texto da Constituição de 1988
considerado o mais avançado em defesa da cidadania e da democracia.

No setor da Saúde são debatidas as recomendações médicas que confrontam bloqueios
sociais presos aos preconceitos culturais ou às pressões internacionais da indústria de
medicamentos. A Previdência Nacional carrega ainda leis absolutamente injustas (como a
do "fator previdenciário") que penaliza na aposentadoria os trabalhadores que
trabalharam algum tempo em outros países) determinadas por Governos anteriores que
retiraram abusivamente aos idosos os recursos que destinavam a outros fins.

O papel dos movimentos sociais

As editoras e todo o sistema midiático procuram mostrar que nesta fase em que todos
precisam de um sistema democrático, por um passe de mágica tornamo-nos irmãos, não
há luta de classes, a classe média absorveu a antiga pobreza. As poderosas contradições
desaparecem sob o título da cidadania brasileira que canta as mesmas músicas e luta
pelo desenvolvimento nacional. Mas a realidade no dia a dia divide os interesses mais
profundos, a distribuição de renda é absurdamente injusta, a propriedade privada
determina a importância social de cada cidadão e a capacidade de acumular riquezas, e
os cidadãos "de sorte" defendem com unhas e dentes o seu poder na sociedade (tal como
antes, quando era a burguesia e o proletariado). Mudam-se os nomes, mas a realidade
nua e crua quem conhece é o povo e as suas organizações de luta: os sindicatos, as
associações de mulheres, de etnias, de deficientes físicos, de trabalhadores sem terra, de
moradores sem teto, de estudantes, de profissionais, de desempregados, de pequenos
camponeses, de artesãos, de todos os setores que são prejudicados pela ganância dos
ricos organizados como elite.

Com as repetidas crises mundiais do sistema capitalista e a queda da União Soviética –
que chegou a constituir uma potência socialista e serviu de suporte a um formidável
movimento internacional pela democracia -, hoje predominam as teorias econômicas que
procuram equilibrar a eficiência empresarial do capitalismo com as conquistas sociais do
socialismo adotadas pela ideologia social democrata. No interessante livro "O Universo
Neoliberal em Desencanto", de J.Carlos de Assis e Francisco A. Dória, é referida a
importância do método de Marx – a dialética – seu método, explica que a marcha da
história é uma sucessão progressiva de conflitos e sínteses no mundo real, refletida no
mundo das ideias, algo tão certo quanto o mundo que se desenrola diante de nós". O
autor não adota a ideologia de Marx e diz: "mesmo depois de anos e décadas em que
gastei quilos de papel e de saliva criticando o imperialismo norte-americano" hoje
recomendo aos formuladores de políticas: "alinhem-se, pelo menos quanto ao aspecto
fiscal, à política norte-americana comandada pela ala progressista do Partido Democrata
contra a Europa".

Diverge da meta comunista apontada por Marx, e implantada por Lenin no sistema de
produção socialista que sobreviveu por 80 anos tornando-se uma potência mundial que
fez face ao poder imperialista mundial enquanto deu apoio a todos os movimentos
democráticos (contra preconceitos e no respeito pela igualdade racial, de mulheres, de
classe social, e as lutas pela independência nos países dominados pelo colonialismo). O
autor defende uma forma de capitalismo (ainda utópica) "uma política econômica sob o
comando da cidadania ampliada, é fundamental para o progresso econômico justo e a
paz social".

Diante do caos planetário anunciado pelos defensores da natureza e da falência visível do
sistema financeiro nos países mais ricos (cujos Governos oscilam entre as tendências
social democrata e a de direita), e ao som dos bombardeios sobre uma série de nações
árabes apoiados pelos responsáveis mundiais pelo sistema capitalista, cabe aos povos
refletir sobre as metas mais seguras para toda a população, a iluminarem as decisões
concretas a serem tomadas, eliminando necessariamente as contradições objetivas que
constituem obstáculos ao processo de desenvolvimento democrático das sociedades.
Defender o êxito da produção, dentro do princípio democrático universal, implica em criar
simultaneamente condições sociais igualitárias para os trabalhadores e suas famílias
sobreviverem formando-se profissionalmente e exercendo a sua cidadania.

O olhar da elite, à qual Gerdau reconhece pertencer, idealiza a condição de vida do
trabalhador ou é míope devido à distância em que se situa em relação à realidade
nacional. Investir na formação dos trabalhadores brasileiros obriga a criar condições de
vida para ser efetivamente um gesto de solidariedade, base da democracia, e não apenas
uma operação empresarial de modernização dos meios de produção.

As organizações de massa não podem ficar à espera dos projetos nacionais elaborados
ou financiados pela elite financeira. Devem apresentar os seus, fundamentados pelo
conhecimento da realidade concreta e com a responsabilidade que exigem ao Governo
para alcançar as condições de viabilidade e de equilíbrio face as necessidades nacionais
de produção, trabalho, formação, desenvolvimento. Como diz Manuel Carvalho da Silva
ex-dirigente da CGTP-Intersindical em Portugal e hoje professor universitário e
investigador na área de Sociologia e Ciências da Educação, " os sindicatos têm novos
desafios, sobretudo ligados ao tempo de trabalho, aos salários, à segurança e
estabilidade, e à contratação coletiva"… que "foi o instrumento de trabalho mais útil e
eficaz na distribuição da riqueza na segunda metade do século 20 e hoje está a ser posta
em causa". Podemos pensar que, em um área específica do trabalho rural, a reforme
agrária, também impõem-se desafios como aos sindicatos, relativos ao trabalho, e mais: à
organização da produção tendo em vista o mercado nacional e internacional, como base
do seu projeto que reivindica terras disponíveis que o Estado pode destinar à produção
necessária ao país.

* Zillah Branco é socióloga, militante comunista e colaboradora do Vermelho