"Contra o imperialismo sempre estaremos em aliança", diz Morales

Em entrevista exclusiva com HispanTV, canal espanhol da República Islâmica do Irã, o presidente da Bolívia, Evo Morales, revela que, apesar de estar habilitado para um novo mandato presidencial, ainda não decidiu se concorrerá de novo à presidência, em 2014. "Enquanto houver no mundo uma mentalidade de monopólio do capital em poucas mãos sempre haverá uma luta permanente contra o capitalismo”, declara Morales.

Durante 45 minutos de intenso diálogo, Morales respondeu a um amplo leque de perguntas: sua origem camponesa; as implicações de ser presidente; a ingerência dos Estados Unidos; as relações com o Irã e os conflitos sociais que aconteceram ultimamente no país. Confira a íntegra da entrevista, abaixo.

Hispan TV: É importante o diálogo com a imprensa internacional?
Evo Morales: É importante para que o mundo possa ser informado sobre as políticas sociais que vamos implementando e também sobre as políticas estruturais. Fundamentalmente, para informar sobre a maneira como vamos transformando a Bolívia.

Hispan TV:
Estamos nesse palácio presidencial e pensava no presidente de origem camponesa que está ocupando esse palácio. No entanto, há anos o senhor se move entre a alta política internacional. Gostaria de saber: o que resta em Evo Morales daquele dirigente camponês, do dirigente cocaleiro do Trópico de Cochabamba; o que permanece hoje desse Evo Morales depois de tantos anos movendo-se, viajando pelo mundo, entre tantos líderes?
EM:
Para mim, continua o mesmo; meus companheiros, especialmente os do campo, me dizem "não mudaste em nada”. Só que agora não tenho tempo para partilhar como antes. Gosto muito de ouvir os companheiros do Trópico falarem "companheiro Evo”; ou os do movimento camponês, que me dizem "Irmão Presidente”.

Agora, é mais movimento. Estar em todas as partes. Um dia estive em cinco Departamentos para falar sobre gestão… Antes, como dirigente, se não estava nos Departamentos, estava nas centrais camponesas: duas ou três concentrações; quatro ou cinco reuniões. No máximo, antes, andava em dois ou três Departamentos; hoje, como presidente, ando por quatro ou cinco Departamentos. Isso não mudou tanto; o trabalho se ampliou. O que mudou é que antes o meu instrumento de trabalho como camponês era o machado e o facão; agora é o avião, o helicóptero; que não é um luxo, mas são instrumentos de trabalho. Talvez essas coisas mudaram (mostram suas roupas); antes nunca havia visto um paletó; e, às vezes, quando visto meus jeans, minha camisa, minha ‘chamarra’(*) digo "agora me sinto Evo Morales”.

Hispan TV: Sempre se diz que o poder isola; o Palácio, a segurança presidencial… O senhor sente que através do contato com as pessoas e com as bases pode manter um bom diálogo, ou, sim, pode haver algum isolamento?
EM: Meus companheiros reclamaram quando viram excesso de seguranças; tento diminuir um pouco isso; especialmente nas concentrações, nas reuniões. São companheiros! Aos poucos, a polícia e a equipe de segurança se adequaram; antes era muito rígido, estrito; estavam sempre por perto, a dois ou três metros… Agora, não. Pode-se ver que estamos em contato, saudando mesmo às pressas; mesmo faltando tempo para tirar a foto, como os companheiros gostariam que fosse. É quase impossível atender a todas as demandas; porém, sempre estamos em contato; sempre fazemos reuniões com os distintos setores sociais.

Hispan TV: O senhor gosta de ser presidente?
EM: (Risos) Nunca sonhei em ser presidente. Eu fui de Oruro, de Orinoca, ao Trópico de Cochabamba para melhorar a economia da família; queria estudar; porém, meu pai morreu. Fui nomeado dirigente sindical, desde 81, como Secretário de Esportes; assim comecei… Me integrei ao sindicato através do esporte, do futebol; fui dirigente principal da Federação das Federações… E quando começamos a pensar em um instrumento político não acreditava tanto nesse instrumento político da libertação social, cultural, financeira, econômica. Em 2002, quando por primeira vez nos candidatamos, me surpreendi com a votação que tive. Após os resultados de 2002, acreditei que poderia ser presidente. Desde a década dos 50, o MAS (Movimento ao Socialismo) foi o único partido que ganhou quatro eleições com mais de 50% dos votos e duas delas com mais de 60%. Isso, que eu saiba, nunca havia acontecido. É o resultado de um trabalho permanente. Em 2005, ganhamos com 54%; e em 2009, com 64%. Que Presidente, após um primeiro mandato, aumentou sua votação? Nunca! Sempre baixava. Isso tudo me compromete muito mais no trabalho permanente pelo povo boliviano.

Hispan TV: Uma pergunta com certa malícia: Presidente, eu sei que o senhor tem longas jornadas de trabalho; evidentemente, é apaixonado pelo que faz… Até quando acha que será presidente, ou até quando gostaria de sê-lo? Eu falei em malícia porque há uma discussão sobre se o senhor pode se candidatar novamente ou não; porém, além disso, até quando o senhor gostaria de ser líder desse processo de mudança?
Em:
No momento, estou preocupado em atender as demandas de nossos setores sociais, de nossas regiões; esse é o meu maior interesse atualmente, porque quando há resultados a autoridade sente uma grande satisfação; e também é uma emoção e uma alegria para os beneficiários. Pela nova Constituição ainda posso me candidatar mais uma vez. É verdade que há alguns setores, alguns companheiros que dizem que devo tentar a reeleição; mas até agora não falei nada para ninguém; não me decidi. Qualquer ratificação, cumprindo a Constituição, dependerá do trabalho que se faça. Nunca em minha vida me ofereci para ser candidato: nem para dirigente, nem para deputado, nem para presidente. Quando me fizeram a proposta para ser deputado, rejeitei. Havia muitos problemas em minha organização. Não penso que deva ser "eu ou ninguém”. Nunca sonhei em ser presidente. Depois disso, o que vem? Voltar para meu ‘chaco’, ficar lá; tenho muito desejo de regressar, de ter minha casinha, como ex-presidente, receber a meus ex-ministros/as; que venham me visitar; meus ex-comandantes; ampliar os laranjais; minha plantação de coca, de banana; colher; trabalhar; comer; comentar; recordar como trabalhamos; como lutamos também… Porque agora é trabalhar, trabalhar pelo povo e lutar, lutar contra o império e seus instrumentos que estão internamente prejudicando o desenvolvimento do povo boliviano. Esse é o meu grande desejo agora.

Hispan TV: Presidente, o senhor falou em imperialismo. Parece que Estados Unidos querem desestabilizar a todos os governos no mundo que não são afins aos seus interesses e têm diferentes estratégias. Vimos o que aconteceu no Iraque, depois na Líbia, agora na Síria. Em nossa América Latina tentaram golpes de Estado, motins policiais, o golpe cívico-militar contra Zelaya, em Honduras… Que reflexão podemos fazer sobre o funcionamento dessa Ordem Mundial?
EM: Um compatriota meu, me dizia: "Evo, tens que saber que o Império sempre tentará golpe de Estado”; buscará desestabilizar o país. Golpes de Estado têm acontecido em toda a América Latina; mas não acontece nos Estados Unidos. Por que não aconteceram golpes de Estado nos Estados Unidos? Por que não há embaixador dos Estados Unidos nos Estados Unidos? Qual é a atual estratégia dos Estados Unidos? Criar convulsões em um país para, com isso, justificar uma intervenção, seja através da ONU, ou da Otan. No tema do Território Indígena do Parque Nacional Isibore Secure (Tipnis), eu disse no ano passado que passava da Media Luna política à Media Luna indígena. Se essas marchas, se essas demandas fossem pela Pachamama eu daria a minha vida; porém, essas demandas são políticas, são por dinheiro e não pela Mãe Terra, pela Mãe Natureza. Essas ONGs, a direita e o império destroçam organizações e dirigentes. Por isso, eu creio muito na consciência do povo boliviano. Ser autoridade não é um benefício; não é um negócio; é um sacrifício, esforço, mais compromisso com o povo boliviano. Isso eu aprendi ao ser dirigente e, por isso, estou contente por continuar trabalhando pela Bolívia.

Hispan TV: A embaixada dos Estados Unidos freou seu espírito conspirativo ou continua conspirando? Pergunto isso devido a algumas acusações contra sua pessoa que mais parecem operações de inteligência, psicológicas, para danificar sua imagem e a do seu governo. No pessoal, parecem mais orquestradas desde algum serviço de inteligência estrangeiro do que um armadas pela própria oposição. Os Estados Unidos continuam conspirando?
EM: Continuam e continuarão conspirando. Por isso, há um momento lhe disse que aqui estamos trabalhando pelo povo e lutando contra o império; e isso será permanente. Enquanto houver uma mentalidade no mundo no sentido de homogeneizar ou monopolizar o capital em poucas mãos sempre haverá uma luta permanente contra o capitalismo, contra o imperialismo. Porém, como enfrentar isso? É trabalhando pelo povo. Que acusações, que calúnias ainda estão por vir? Antes de eu ser presidente, fui acusado de ser terrorista, de ser o Bin Laden andino, de ser narcotraficante, de ser assassino; me acusaram de tudo o que se pode imaginar… Quando vimos de maneira direta e de frente que estavam conspirando, expulsamos ao Embaixador. Nem Evo Morales e nem a Bolívia jamais serão perdoados por isso. O Brasil poderia expulsar; a Argentina também; são países desenvolvidos e podem ser perdoados. Porém, a expulsão feita por um chamado "índio” jamais será perdoada. Por isso, o que pensamos por aqui é trabalhar e trabalhar pelo povo. Também aprendi a pensar e pensar na Bolívia e, inclusive, dormindo, a sonhar e sonhar com a nova Bolívia.

Hispan TV: Segundo sua opinião, o que de melhor esse processo de mudanças trouxe para a Bolívia?
EM: A democratização de economias, mediante rendas e bônus; as políticas sociais; porém, também, a nacionalização para avançar na atenção às demandas do povo.

Hispan TV: Houve vários conflitos que, me parece, geraram certo desgaste para o governo: Tipnis, o chamado ‘gasolinazo’, os médicos… De alguma maneira, houve falta de previsão política para enfrentar esses conflitos?
EM: Pode ser que esses temas ainda afetem a alguns setores sociais por mais algum tempo. Não é "gasolinazo”; é nivelação de preços, porque nivelar o preço do combustível é cuidar da economia nacional. Estou contente porque não me equivoquei; porque, cedo ou tarde, teríamos que acabar com a subvenção. Se não resolvêssemos isso, poderia tornar-se o câncer da economia nacional. Você mencionava os médicos, cuja decisão para que trabalhem 8 horas vem desde o I Encontro Plurinacional. Não é que os médicos não queiram trabalhar 8 horas; eles trabalham até 12, 13 ou 14 horas. A questão é que se trata de um grupo privilegiado. Queremos que haja mais atenção à gente pobre. Naquele momento, aconteceu o desgaste; porém, depois, as pessoas analisam e dizem: o governo tem razão. Claro que esses grupinhos não querem perder seus privilégios; uns trabalham na Universidade, na caixa, na saúde pública e em sua clínica particular; atuam em quatro lugares ao mesmo tempo. E que fazem alguns médicos? Não chegam a trabalhar nem 6 horas; aparecem rapidamente para as consultas e se vão. Passam rapidamente pelo posto de saúde pública e, em seguida, vão para suas clínicas particulares. Cedo ou tarde o povo saberá o que fizemos pela saúde pública. O Tipnis: protestam porque quero construir caminho, não porque não quero fazê-lo. Queríamos construir esse caminho desde antes da fundação da República, antes de 1825 cochabambinos e benianos fizeram expedições para descobrir e fazer caminho. Também Antonio José de Sucre, o segundo presidente da Bolívia, propôs a construção do caminho. E, lamentavelmente, trazem à tona o tema do meio ambiente. Claro que temos que cuidar do meio ambiente. Por isso digo que se fossem mobilizações e demandas pela natureza, excelente! Porém, é uma política por dinheiro.

Hispan TV: Presidente, o senhor parece uma pessoa de fortes convicções. Esse é um de seus pontos mais fortes enquanto dirigente político. Em sua opinião, qual sua principal virtude como dirigente político e que o colocou na presidência da Bolívia?
EM:
Não sei se vem do sofrimento de nossa vivência; porém, continuo pensando no que vive na adolescência e no Trópico de Cochabamba, uma pobreza… Não conhecia a luz elétrica, o telefone, a ducha, banheiro… Quando eu tinha 10 anos, vi uma ducha pela primeira vez. Quando tinha uma camisa ou calça, minha mãe a tomava por duas razões: para remendar ou para buscar os buracos. Eu continuo pensando nessa classe de famílias, em como trabalhar por elas.

Hispan TV: Presidente, por que ter relações com o Irã, um país que está ameaçado e demonizado pelos Estados Unidos?
EM:
Por isso mesmo: porque está ameaçado pelo imperialismo norte-americano. Sempre estaremos em aliança com os países vítimas do imperialismo.

Hispan TV: Como o senhor foi tratado em suas visitas ao Irã?
EM: Muito bem; como sempre, em todas as partes, exceto nos Estados Unidos. Com muita amabilidade, muita hospitalidade, no Irá, na China, na Coreia do Sul, no Japão, em todas as partes.

Hispan TV: Presidente, quisera concluir essa entrevista pedindo-lhe uma mensagem para os Estados Unidos, porque estão desestabilizando e gerando muitas guerras em muitos lugares; agora, estão gerando uma guerra interna na Síria. E tudo parece indicar que se conseguirem destruir a Síria, em seguida, tentarão o mesmo no Irã.
EM: A pobreza cresceu 15% nos Estados Unidos, um país capitalista, em crise financeira, onde a pobreza cresce, o desemprego também. Os Estados Unidos deveriam mudar sua política. Em algum momento, na penúltima Cúpula de Chefes de Estado, o presidente Barack Obama me surpreendeu; ele disse que a América Latina seja sócia e que haja respeito mútuo; mas isso ficou somente nas palavras. Daí em diante, não acreditei mais… Ele vem de uma família discriminada; eu também venho de uma família discriminada; e um discriminado discrimina ao outro… Se as autoridades políticas e econômicas dos Estados Unidos não mudarem de mentalidade, esse país não tem muito futuro.

Fonte: Adital (tradução)