Manfredini: Vidas, veredas, paixão, memórias da saga comunista

Em tempos de Bienal do Livro 2012, em São Paulo, o Vermelho apresenta aqui um lançamento ainda no prelo, de Luís Manfredini, autor de extensa obra que reconstitui a paixão e os caminhos da militância comunista desde os tempos da ditadura.

A entrevista a seguir é de Walter Sorrentino que, em uma gostosa conversa com o autor, aborda o novo livro Vidas, veredas: paixão – memórias da saga comunista, e recorda outros títulos e fatos da vida desse amante das letras e das lutas políticas e sociais. Acompanhe a seguir:

Walter Sorrentino: Elogio do pensamento humanista e transformador

Luis Manfredini, escritor, com vocês no Conversa.com. Juntos, o Departamento Nacional de Quadros do PCdoB e a Fundação Maurício Grabois, tivemos gratificante trabalho de produzir uma obra da qual Manfredini foi o organizador. “Vidas, veredas: paixão – memórias da saga comunista” é como vai se chamar e já está no prelo.

Por Walter Sorrentino+

Pedi a Manfredini para compartilhar com vocês o caráter desse trabalho e aproveitar para dar a conhecer aos amigos do blog esse escritor que admiro, além de ser grato companheiro de partido. 

Walter Sorrentino – Caro Manfredini, bem vindo ao Conversa.com do blog. Acabamos de terminar um trabalho conjunto escrito por você. Ele se liga diretamente ao conceito de atual geração dirigente da corrente comunista no país, todavia pouco conhecida na singularidade das histórias pessoais. Fale um pouco do livro para o leitor.

Luís Manfredini – Sim, foi um trabalho de fôlego que envolveu quase 40 entrevistas presenciais e umas 50 outras realizadas a partir de roteiros por escrito, além de ampla pesquisa bibliográfica. O foco central foi levantar e expor a trajetória pessoal desse amplo conjunto de revolucionários em sua luta contra a ditadura e pelo socialismo no Brasil, em sua maioria sob as dramáticas condições da clandestinidade e da repressão policial. E o resultado, que logo será posto ao julgamento dos leitores, foi um largo painel de como a corrente comunista enfrentou as lutas a que se propôs. O que chama a atenção na obra é que ela inova ao romper com a tradição que mandava examinar os revolucionários quase só como militantes, a partir de suas idéias e condutas políticas, relegando a plano secundário as pessoas que continham tais idéias e produziam tais condutas, deixando de perceber o quanto a personalidade de cada uma dessas pessoas, suas origens, suas influências muitas vezes determinavam os rumos de suas idéias e condutas. Então, o que verte desses perfis é humanidade pura, com seus ingredientes de drama, tragédia, hilaridade, aventura. Quantos conhecem essa faceta? Raríssimos. Agora conhecerão a vida que pulsava por trás dessa trajetória de lucidez e valentia. E certamente aprenderão com elas.

WS – Então, foi um registro de caráter literário, uma obra para ser lida de fato por contingentes amplos, certo? Que significou essa experiência para você – uma revisita a tempos passados mas que se projetam para o presente e futuro.

LM – Eu diria que foi um registro que articulou jornalismo e literatura. Jornalismo no sentido da fidelidade aos fatos. Ou seja, nada foi criado pelo autor. Literatura no sentido de apresentar literariamente os perfis, com alguma trama, com fluidez de linguagem, metáforas e uma estrutura narrativa mais livre. Tudo isso ajuda a tornar a leitura mais agradável e, portanto, acessível a um público mais amplo. Nada de jargões, de frases de propaganda, nada de teses. Quanto ao que esse trabalho significou para mim, devo dizer que me proporcionou a ocasião de revisitar meu próprio passado pela lente de outros. Ou seja: como um grande conjunto de companheiros viam e vêem tudo aquilo que vivemos juntos na luta contra a ditadura e pelo socialismo no Brasil. Nas interlocuções com boa parte dos entrevistados, esclareci dúvidas, troquei opiniões, sugeri reflexões sobre esses anos todos. Foi como mergulhar na história política do nosso País. Sobretudo foi reconfortante nos ver sob os mesmos trilhos do sonho e da rebeldia.

WS – Aprecio teu veio literário. Esta é a segunda obra voltada para histórias pessoais na evolução política do país. As Moças de Minas e Memória de Neblina. Fale um pouco deste último.

LM – Memória de Neblina
é um romance sobre meninos e meninas que, sob a ditadura militar, conviveram com sonhos e pesadelos justamente quando estavam se formando para a vida, quando já não eram mais crianças, tampouco adultos. Hilários, dramáticos, amorosos, radicais, lutam e brincam a um só tempo. Nas frias madrugadas curitibanas, picham poemas nos largos muros de um colégio e, em seguida, se aventuram em estrepulias até o amanhecer. Dias depois, lá estão eles distribuindo panfletos em um bairro operário e discursando sobre bancos de praças. Nas trevas sob as quais vivem, o lúdico não abandona o revolucionário. Mais tarde, entre operários e camponeses, nos subterrâneos da clandestinidade política, já adultos, continuam semeando sua revolução. Penso que o Memória de Neblina é, sobretudo, um elogio ao pensamento humanista e transformador. Junto com o anterior, As moças de Minas, o romance compõe um largo painel das encruzilhadas da insubmissa juventude dos anos 60 e suas utopias de transformação do mundo.

WS – Muitos perguntam o quanto é autobiográfico e eu estranho – sim e não. Estou certo?
LM – Sim e não, é verdade. Um ficcionista do realismo escreve a partir da sua experiência pessoal, da experiência de outros – que testemunhou ou da qual ouviu falar. A isso acrescenta o que é capaz de inventar. É o “elemento acrescentado” de que fala o peruano Mário Vargas Llosa. E mesmo o inventado possui lastro na vivência do autor ou de outros. A tudo isso ele dá uma formulação literária, que possui regras próprias. Veja como a demência senil que ataca a memória do grande Garcia Marquez o impede de voltar a escrever. A memória é tudo.

WS – Sim, creio que literatura é experiência somada, memória e cultura, com expressão formal singular. Dostoiévski dizia que o romance é a verdade da mentira. Me intriga essa fronteira entre ficção e realidade… Mas como nasceu esse anseio literário em tua vida, como se desenvolveu? Sei que você vem do meio jornalístico, repórter, cujo texto é claro, conciso, direto e eu aprecio. Mas daí à literatura, como foi o passo? Como a experiência militante contribuiu ou retardou esse anseio?

LM – A literatura é antiga na minha vida, veio antes do jornalismo e da política. Nasci em Curitiba, em 1950 e, entre os oito e os dez anos de idade, eu meu amigo de infância Wilson Bueno singrávamos as garoas de Curitiba, tardes e tardes caminhando e arquitetando a vida futura, enquanto os outros jogavam futebol. No centro daquelas remotas deambulações, a escrita e a leitura. Almejávamos ser escritores. Aos dez anos editamos um jornalzinho mimeografado na Biblioteca Pública do Paraná. O “Rui Barbosa” teve uma única edição. Aos 13 anos, quando eu cursava o Colégio Militar de Curitiba, fundamos o Centro Juvenil de Letras de Curitiba e mergulhamos, junto com outros, no mundo dos escritores. Escrevíamos copiosamente e publicávamos crônicas e poesias nos jornais. Mas em 1966 nos separamos, Wilson Bueno e eu, ele com 17, eu com 16 anos: a política me alcançou com a força de um vendaval, colocando-me na Ação Popular e na luta revolucionária; Wilson mudou-se para o Rio, destino dos que desejavam ousar na vida literária, de lá voltando mais de dez anos depois para se tornar um dos grandes escritores brasileiros contemporâneos. Quanto a mim, segui a trajetória de tantos outros rebeldes daquela época tormentosa: movimento estudantil, breve experiência no campo, vida clandestina e luta política. Mas nunca abandonei o sonho literário. Mesmo sob as sombras, no início dos anos 70, não deixei de ler e escrever. Na época, era à poesia que me dedicava. Cheguei a escrever algumas que, segundo me disseram, seriam encaminhadas ao jornal Libertação, da AP. Mas a partir de 1971, aos 21 anos de idade, o jornalismo falou mais alto e a ele me dediquei quase que exclusivamente. A ele e à luta política, o que manteve a literatura em estado apenas latente por alguns anos. Depois, com As moças de Minas, publicado no final dos anos 1980, a literatura retomou seu fôlego, submeteu o jornalismo, que se tornou mero ganha-pão. Hoje, no início da segunda década do século XXI, já tendo publicado Memória de Neblina e trabalhando em outros romances, a literatura – penso que definitivamente – é a senhora à qual me submeto por inteiro. À literatura e à luta política, porque desta, obviamente, jamais me afastarei, embora a exerça de modo compatível com a idade que avança e limita.

WS – Você é leitor contumaz? Que lhe parece o panorama literário da atualidade, no Brasil e no mundo?
LM – O mercado alcançou em cheio a literatura. Escritores são contratados pra escrever qualquer coisa, qualquer bobagem, que as editoras, a custa de forte mídia (em que não faltam os elogios por encomenda), tratam de vender como best-sellers e tornar vencedores de concursos, e assim vender mais. Por isso, numa livraria, evito a estante dos mais vendidos. E, francamente, fico cada vez mais fiel aos grandes escritores do passado. Releio Machado, Graciliano, Érico Veríssimo, releio os maravilhosos russos, agora com tradução direta, sem a mediação do francês, e os americanos London, Faulkner, Caldwell, Saroyan, Roth, Auster, o excelente Cormac McCarthy, entre outros. Llosa, Garcia Marquez, Rulfo, os insuperáveis argentinos, o chileno Bolaños, os portugueses Saramago e Lobo Antunes, entre outros. Bem, a lista é grande. Acho que a literatura brasileira contemporânea, salvo honrosas exceções, ainda muito influenciada por modismos, por malabarismos meramente formais que, às vezes, a tornam muito próxima do texto publicitário. Mas quero vincar aqui a obra de um escritor paranaense, Wilson Bueno, morto tragicamente aos 61 anos, em 2010. Como disse anteriormente, fomos amigos de infância e adolescência, construímos juntos nossas trajetórias literárias. E ele se tornou brilhante, um dos mais importantes escritores brasileiros da atualidade. Dele, chamo a atenção para o notável Meu tio Roseno, a cavalo, uma obra-prima.

WS – Conheço outros trabalhos editoriais teus, aliás todos muito belos, sobre o Paraná.. Você gosta de escarafunchar coisas da história. Fale um pouco deles.
LM – Eu destacaria o livro Sonhos, utopias e armas, encomendado pela Secretaria da Cultura em 2010 para desmistificar a idéia – mais ou menos generalizada – de que o Paraná foi construído sem conflitos. Não foi. Aqui houve, por exemplo, três guerras camponesas, uma delas, a guerrilha de Porecatu, no início dos anos 1950, dirigida pelo Partido Comunista. Houve muitos movimentos grevistas e algumas insurreições. O Paraná foi palco de lutas encarniçadas, como o cerco da Lapa, durante a Revolução Federalista, entre 1893 e 1895. O Paraná é um estado interessante. Aqui houve uma experiência fourierista, entre 1847 e 1858, capitaneada pelo médico francês Jean Maurice Faivre (tema de um romance histórico que escrevo no momento) e outra anarquista, liderada pelo italiano Giovanni Rossi, sem falar nas reduções jesuíticas exterminadas pelos bandeirantes paulistas no século XVIII. Entre 2005 e 2011 produzi, para a Federação das Indústrias do Estado do Paraná )FIEP), a coleção Empreendedores do Paraná, de quatro volumes, com os perfis de mais de 40 empreendedores industriais, um trabalho que, de certo modo, acabou por revelar a ocupação e a construção de boa parte do território paranaense, ocorrida a partir dos anos 30 do século passado. Na política a história nos orienta e, na literatura, é inesgotável fonte de criação.

Abraços a você, Luis.

Fonte: Blog do Walter Sorrentino