As quatro mortes da estudante paulista que virou guerrilheira

“Na cabine, o comandante sente o cano do revólver em sua nuca, e ouve a ordem: Vamos para Cuba. Mas, antes, pare em Santiago e carregue o avião com a maior quantidade possível de combustível.” O trecho narra o sequestro de um avião em Buenos Aires, feito pela Ação Libertadora Nacional (ALN), liderada por Carlos Marighella. A bordo, com uma bomba no colo, Maria Augusta Thomaz, a estudante que se engajou na luta armada contra a ditadura civil-militar no país.

Por Deborah Moreira, do Vermelho

Usando codinomes como Renata, Sofia e Marcia, Maria Augusta Thomaz abandonou a carreira de filósofa e uma vida inteira para ingressar em um grupo de guerrilheiros que partiram para a ilha de Fidel para passar por um treinamento militar, juntamente com camaradas que dispensam apresentações como Franklin Martins e José Dirceu, que assina o prefácio da obra “Luta Armada/ALN-Molipo, As Quatro Mortes de Maria Augusta Thomaz”, do jornalista e sociólogo Renato Dias, que tem uma forte ligação com a biografada.

O “thriller político”, como define o autor, será lançado no sábado (28), no Memorial da Resistência, em São Paulo, a partir das 10h. Mas, começou a ser pensando muito antes, há 32 anos, quando Renato leu uma notícia no jornal sobre uma bela jovem, morena, de olhos verdes, cabelos longos, magra, que depois de ter participado de ações contra a ditadura desde 1968, foi assassinada aos 25 anos, e suas ossadas, enterradas secretamente numa fazenda em Goiás, tinham sido roubadas, juntamente com os restos mortais de Marcio Beck Machado, seu companheiro e também integrante da ALN.

Antes da sessão de autógrafos, durante o lançamento, está previsto um debate sobre Molipo & ditadura civil e militar (1964-1985) com o economista Pedro Rocha Filho e José Dirceu.

Em entrevista ao Vermelho, Renato revela o momento exato que despertou para a história de Maria Augusta e toda sua busca pela verdade por traz dos relatos colhidos ao longo dos anos, como se quisesse desvendar sua própria história e de sua família, que também vive o drama de ter perdido alguém tão querido e seu corpo jamais ter sido encontrado.

Renato é irmão de Marcos Antônio Dias Baptista, aluno do Colégio Lyceu de Goiânia, membro da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (Var-Palmares), mesma organização política e militar da presidenta Dilma Rousseff, e que desapareceu em maio de 1970, aos 15 anos, sendo o desaparecido político mais jovem.

Em Cuba, depois do sequestro do avião, em 4 de novembro de 1969, Maria Augusta foi uma das integrantes da dissidência da ALN, o Movimento de Libertação Popular (Molipo), retornando clandestinamente para o Brasil. Em 1973, depois de diversas ações de guerrilha na área urbana, vai para zona rural brasileira, tida como estratégica para a revolução pretendida pelo grupo. Em 17 de maio daquele ano, é morta. Após 7 anos, o jornalista Antônio Carlos Fon descobriu o crime e estava prestes a denunciá-lo publicamente quando as ossadas desapareceram.

Apesar das dificuldades, Fon aponta para um dos suspeitos da morte do casal, Marcus Antônio de Brito Fleury, então diretor Regional da Polícia Federal, naquele estado. Meses antes (1980), o mesmo Marcus Antônio de Brito Fleury já tinha sido apontado pela assistente social Maria de Campos Baptista como responsável pela prisão ilegal, tortura, morte e desaparecimento do corpo de seu filho e irmão de Renato.

A mãe de Marcos Antônio morreu em 15 de fevereiro de 2006 lutando pelo esclarecimento de sua morte. Agora, Renato Dias tem esperança de que todas essas perdas sejam apuradas na Comissão da Verdade. Acompanhe a íntegra da entrevista:



O jornalista Renato Dias/divulgação

Vermelho: Quando e como foi que você teve a ideia de fazer um livro sobre a Maria Augusta Thomaz?

Renato Dias: Ela nasceu na cidade de Leme, região de Campinas, no interior paulista. Quando era estudante mudou-se para a capital, onde acabou tendo contato com a revolução política e cultural da época, participando da luta política em 1968, quando ingressou na ALN, adotou estratégia de luta armada contra a ditadura civil e militar, participou do sequestro do avião da Varig, em Buenos Aires, que a levou para Cuba, onde participou de um treinamento civil-militar, juntamente com outros como José Dirceu e Franklin Martins. Ajudou a fundar a Molipo, dissidência da ALN. Voltou clandestinamente para o país, onde realizou ações armadas. Em 1973, mudou-se para Goiás, porque o projeto original da ALN e do Molipo era deflagrar a guerrilha rural, quando foi assassinada na fazenda Rio Doce, em Rio Verde, Goiás. Suas ossadas e as de seu companheiro, Marcio Beck Machado, foram sequestradas, em 1980. E essa notícia foi publicada no jornal Diário da Manhã, quando eu tinha 12 anos. Gostava de ler o caderno de esportes, mas fiquei impactado com a notícia e com sua foto, que é a foto da capa do livro.

Vermelho: Que é linda, né?
RD: Uma mulher linda, morta aos 25 anos de idade. E eu tenho um irmão que é desaparecido político, o mais jovem desaparecido político do país. Aos 15 anos, Marcos Antônio Dias Baptista, que era da VAR-Palmares, mesma organização que participou a nossa presidenta Dilma Rousseff. Então, essa é uma história que marcou minha família. Naquela época já faziam 10 anos que ele havia desaparecido, em maio de 1970. Nunca entregaram os restos mortais dele. Ai fiquei com aquela imagem na minha cabeça, da Maria Augusta. Mais tarde, fui fazer jornalismo e retornei ao tema nas minhas produções jornalísticas. Em 1993, tive acesso a um documento reservado do Exército que confirmava oficialmente a morte da Maria Augusta Thomaz e do Marcio Beck, e, em 1995, eu pensei: preciso escrever a história dessa mulher.

Vasculhei uns arquivos do Dops[Delegacia de Ordem Política e Social] em São Paulo, ai fui lá, fui ao arquivo da Unicamp. Fui em Rio Verde, onde foi aberto inquérito para apurar a morte dela e o sumiço das ossadas. O advogado que representava a sua família era o Luiz Eduardo Greenhalgh, que faz o posfácio do livro, inclusive. O prefácio é de José Dirceu, porque ele fez treinamento com ela de guerrilha em cuba. Levantei uma documentação extensa. Mas, em 1996, minha irmã foi fazer uma limpeza na casa e não sabia o que era e acabou jogando fora toda a papelada que juntei. Acabei paralisando o projeto, que só foi retomado em 2005. Voltei ao arquivo do Dops de São Paulo, no arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp, onde está guardado o acervo do projeto Brasil Nunca Mais, onde estão os processos da Maria Augusta do Marcio Beck. No total, são mais de um milhão de página, todos os processos da justiça militar contra ativistas políticos na época da ditadura civil-militar, organizado pelo Dom Paulo Evaristo Arns, reverendo Jaime Wright e por advogados como Sigmariga Seixas e Luiz Eduardo Greenhalgh, com redação do Paulo Vanucchi e Ricardo Kotscho.

E aí comecei a fazer uma série de entrevistas de pessoas que conviveram com ela, com membros da ALN e do Molipo, chegando a falar com 170 pessoas. Agora, em 2012, 32 anos depois do primeiro contato com a história, o livro fica pronto. Foi em agosto de 1980 que saiu essa reportagem.

Vermelho: E você contou com apoio de alguém? E como foi recebida a ideia de fazer o livro pelos entrevistados?
RD:
Não tive apoio, fiz tudo sozinho. E todos receberam a ideia muito bem, me abasteceram de informações, documentos exclusivos, porque a história do Molipo é uma histórica trágica e nunca foi contada como merece. Dos 28 integrantes quase todos foram assassinados pela ditadura militar. Um dos poucos sobreviventes é o José Dirceu. É uma história trágica da esquerda brasileira. Formou-se originalmente em Cuba, veio para o Brasil, incorporou mais alguns militantes aqui, mas do grupo original quase todos foram assassinados. É um fato que ainda precisa ser passado a limpo, ainda mais agora em tempos de Comissão da Verdade.

Vermelho: Você acha que a história de Maria Augusta tem chance de ser levada para a Comissão da Verdade?
RD: Já conversei com um membro da comissão, o Paulo Fonteles, falei com o vice-presidente da Comissão Nacional de Anistia, Edmar Oliveira, do PCdoB, e a expectativa é que esse caso seja reaberto, que as circunstâncias sejam esclarecidas, que os responsáveis sejam apontados.

Vermelho: Já fez algum pedido oficial a Comissão?
RD:
Ainda não, mas vou mandar. E tem um detalhe que é importante. Um dos principais suspeitos de ter participado da morte da Maria Augusta Thomaz e do Marcio Beck foi o então diretor regional da Polícia Federal de Goiás, Marcus Antônio de Brito Fleury. Ele teria perdido uma carteira de identidade na operação que resultou na morte dos dois. Isso consta em um depoimento no inquérito que foi aberto em 1980 com o sequestro das ossadas. E Esse Marco Antônio de Brito Fleury é o principal suspeito de ter participado da prisão ilegal, tortura, morte e desaparecimento do corpo do meu irmão, Marcos Antônio Dias Batista. Então, esse é o elo que existe entre essas duas histórias.

Vermelho: E o que foi feito desse sujeito?
RD: Esse cara morreu no dia 3 de março deste ano, acho que com um problema do coração. E o primeiro jornal que deu isso, o único que denunciou naquela época, foi o Tribuna Operária, que era do PCdoB. O jornalista Francisco Messias entrevistou minha mãe, em 1980, que contou a história do envolvimento do Marcus Fleury [na morte do irmão], porque ele era o todo poderoso da ditadura em Goiás, de 1964 a 1985, participando de cargos de expressão como secretário de governo, diretor regional da policia federal, superintendente regional do Dops. Mas, ele não era parente do Sergio Paranhos Fleury não. A semelhança não passa do sobrenome e, claro, do ofício.

Vermelho: Quais recursos de pesquisa você utilizou para o livro? A nova Lei de Acesso chegou a ajudar na busca pelos documentos?
RD:
Não. Eu já tinha feito quase toda a pesquisa quando passou a vigorar a nova lei. Mas busquei muita informação nos arquivos de jornais, como o sequestro do avião, que ela participou com uma bomba no colo e, desta operação, tem um sobrevivente que mora em São Paulo, o Luís de Araújo, com que falei também. Então foi a partir desses recortes, desses documentos. Uma coisa puxava a outra, conversava com um que dizia que fulano tá vivo, e ai eu ia atrás. Por isso que levou um tempo para montar o quebra-cabeça.

Vermelho: E você encontrou pessoas envolvidas que compõem até hoje uma opinião pública importante, como Franklin Martins e Frei Betto?
RD: Sim, eles participaram dessa história. O Frei Betto, por exemplo, estava no Sul do Brasil, deu guarida para o Joaquim Câmara Ferreira, que planejava e participaria da operação do sequestro do avião da Varig. Poucos dias depois, ele foi preso e ficou anos na prisão. E também deu guarida para o Marcio Beck Machado. Eles precisavam fugir do Brasil, onde naquela ocasião havia acontecido o sequestro do embaixador americano[Charles Burke Elbrick], quando se desencadeou uma repressão violenta, mataram o Mariguella, ai boa parte precisou sair do Brasil. E muitos usaram a ponte que o Frei Betto tinha com os dominicanos para fugir pelo Sul, como o Marcio Beck. A Maria Augusta oi por outro caminho, mas acabou chegando lá em Buenos Aires.

Vermelho: O que foi mais difícil?
RD:
A princípio foi encontrar as pessoas e obter algumas colaborações. E também houve dificuldades financeiras para publicar o livro, que só saiu por conta da Lei de Incentivo de Goiânia. Tentei publicar por uma editora nacional, mas não encontrei nenhuma que se interessou, não sei se por achar que esse é um tema superado. Mas, de fato, é difícil encontrar uma editora que esteja disposta a apostar em um projeto com esse perfil. Então só foi possível contar essa história no formato de livro a partir de lei de incentivo.

Vermelho: Você compara a trajetória de Maria Augusta com a de Olga Benário?
RD:
Sim. São duas histórias espetaculares e trágicas. Ambas trocaram de identidade, assumiram a luta contra a ditadura, participaram da luta armada contra o regime militar, foram assassinada de maneira cruel. [Olga Benário era militante comunista alemã e foi morta em 23 de abril de 1942, após ser deportada do Brasil, no governo Vargas, para um campo de extermínio, por ter origem judaica.]

Vermelho: E porque esse título, as Quatro Mortes de Maria Augusta Thomaz?
RD:
Considero que houve quatro mortes da personagem. A primeira quando ela decide entrar para a luta armada e deixa de ser Maria Augusta Thomaz e assume codinomes, ora Renata, ora Sofia, ora Márcia. A segunda morte, que é seu assassinato em 17 de maio de 1973, na fazenda Rio Doce, em Rio Verde, estado de Goiás. A terceira foi em 31 de julho de 1980, quando as ossadas dela são sequestradas numa verdadeira operação limpeza para apagar os vestígios do crime que estava prestes a ser denunciado pela imprensa. E a quarta morte, foi quando as famílias dos desaparecidos políticos tiveram o direito de receber uma certidão de óbito, expedidas pela União, com a Lei 9.140.

Serviço:
Livro: Luta Armada/ALN –Molipo As Quatro Mortes de Maria Augusa Thomaz
Autor: Renato Dias
Design: Carlos Sena
Número de páginas: 240
Preço sugerido: R$ 50,00
Contato do autor: renatodias67@gmail.com