Ganância X ética: a encruzilhada da saúde no Brasil

“Enquanto nos demais estados temos 25% da população com plano de saúde, na cidade de São Paulo temos 60%, é a maior rede privada do Brasil”, explica Mario Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da faculdade de Medicina da USP e coordenador da pesquisa Demografia Médica no Brasil (2011). Essa expansão é perversa porque ela se apoia na venda dos planos baratos, “que não entregam o que prometem”, acusa Scheffer.

Por Christiane Marcondes

Em entrevista exclusiva ao Vermelho, o professor e pesquisador Mario Scheffer é categórico: “o Brasil está em uma encruzilhada, se evoluirmos no plano econômico, o que faremos com esse sistema de saúde insatisfatório? Ele se tornará justo, ético e universal, como deve ser, ou será o contrário, haverá mais investimento nesse mercado dos planos de saúde?”

Para saber algumas dessas respostas, acompanhe a entrevista a seguir:

Vermelho: Como aconteceu esse crescimento desgovernado no mercado de planos de saúde?
Mario Scheffer
: Com o desenvolvimento econômico do país nos últimos três anos e a inclusão social de milhões de pessoas, as operadoras passaram a visar novos nichos de prospecção, criando novos planos individuais populares e voltados a pequenas empresas. O crescimento de planos baratos ocorreu em um nicho de mercado popular barato, que continua crescendo. São planos econômicos com redes enxutas. Para você ter uma ideia, os planos mais baratos da Amil e Unimed dão direito a um único hospital no centro da cidade.

Vermelho: A qualidade de atendimento, consequentemente, caiu…
MS:
Sim, mesmo porque, paralelamente, o número de médicos e hospitais credenciados diminuiu. Enquanto no Brasil temos ¼ da população com plano de saúde, na cidade de São Paulo temos 60%, é nossa maior rede privada. Assim, no resto do país há mais médicos à disposição dos planos de saúde e em São Paulo a situação se inverte, há mais pacientes, proporcionalmente . Aqui na capital temos atualmente mais médicos médicos atendendo no SUS (Sistema Único de Saúde) do que nos convênios particulares de saúde, proporcionalmente ao tamanho da população assistida.

Vermelho: Quem é que pode colocar ordem na casa?
MS: Fica claro que há uma grande omissão da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), que não regula o dimensionamento da rede.

Vermelho: O quadro se agrava com a concentração do mercado, as fusões e aquisições, como as da Amil, que comprou recentemente a Medial e a Dix?
MS: É óbvio que essas fusões pioram a situação. Elas concentram o mercado, criam verdadeiros monopólios , passam a impor restrições e pagar mal médicos e prestadores , diminuem a qualidade e dão margem à criação de mais planos insatisfatórios. Por exemplo, você tem hoje um nicho promissor de venda de planos coletivos. Eles atendem entidades de classe, associações, pequenas empresas e, majoritariamente, “pessoas jurídicas”. Os PJs foram o grupo que Mas há também outro fenômeno, que chamamos de falsos coletivos. É uma pessoa com identidade jurídica que chama mais dois e contrata um plano coletivo. Essa modalidade , “o plano PJ para duas, três, quatro pessoas” é uma arapuca, porque o coletivo não segue as regras de aumento de custo reajuste dos planos individuais, os reajustes anuais são maiores , conforme o contrato entre as partes, geralmente o aumento fica condicionado à maior utilização do plano . e não são anuais. A ANS não regulamenta esse grupo, que é grande. Os falsos coletivos ajudaram a inchar o mercado, eles são mais baratos no início e depois ficam mais caros, acabam expulsando os doentes com problemas mais complexos e mais caros de serem tratados.

Vermelho: Os planos seguem algum padrão que favoreça a regulamentação e fiscalização?
MS: O plano de saúde no Brasil não é homogêneo, há dezenas de tipos diferentes em uma só operadora e no baixo preço está embutido o que não será entregue. No cenário da assistência médica suplementar há uma enorme insatisfação, principalmente com a demora de atendimento nas especialidades , que em muitos casos se aproxima das filas do SUS. Esse mercado está muito concentrado em grandes corretoras…operadoras , o que não é bom, o CADE deveria olhar com mais atenção a possível cartelização do setor, que tanto prejudica os usuários.

Vermelho:…que gerenciam a saúde como negócio, tem que dar lucro (…) E Como é a distribuição dos gastos com saúde no Brasil?
MS:
A balança está desequilibrada, 53% dos gastos com saúde são gastos privados, com planos de saúde, compra de medicamentos e gastos particulares, e apenas 47% são gastos públicos, provenientes de impostos e contribuições sociais e nota-se que aí estão incluídos vigilância, imunização, transplante, diálise, intervenções sérias que o plano de saúde particular não oferece, só o setor público. A raiz da desigualdade está nessa equação perversa: todos os sistemas universais de saúde no mundo tem majoritariamente mais recursos públicos.

Vermelho: Qual é a solução, se é que há solução?

MS: O Brasil está em uma encruzilhada, se evoluirmos no plano econômico, o que faremos com essa riqueza coletiva diante de sistema de saúde insatisfatório? Ele se tornará justo, ético, universal como deve ser? Ou será o contrário, haverá mais investimento nesse mercado (lucrativo) dos planos de saúde? O avanço do privado na saúde, tanto no investimento em medicina como gestão, tem mostrado que, quanto mais o sistema se privatiza, mais aumentam as desigualdades.

Vermelho: Um fato impactante nos últimos tempos é o descredenciamento. O consumidor adquire um plano com tais médicos e hospitais e depois fica sabendo, muitas vezes da pior maneira, que esses profissionais e instituições se descredenciaram. Quais os direitos do cliente nessa situação?
MS: Pode-se tirar um hospital da rede credenciada vendida, mas ele tem que ser substituído por um outro hospital à altura, que ofereça o mesmo padrão de qualidade no atendimento. Já com relação a médicos, o descredenciamento unilateral não prevê reposição. Ganhando em média 40 reais por consulta, os médicos estão deixando de atender convênios e reservando mais espaço em seu consultório para atendimento particular.Por isso é hoje tão difícil marcar consulta com especialista que consta no livrinho do plano de saúde.

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