Samuel Sergio Salinas: A crise é um capricho?

Com essa visão os alemães vão lançar a Eurolândia e provavelmente o planeta numa crise sem fim. Nada mais parecido com a marcha da insensatez. Luiz Gonzaga Beluzzo, com esta frase conclui o seu artigo publicado no Vermelho (16 de junho), com esta curiosa e inexplicável advertência aos alemães, como se esses fossem aptos a reverter a crise atual da Europa com a adoção de generosos afagos financeiros produzidos por dona Merkel.

Por Samuel Sergio Salinas*

Se os alemães podem lançar a Eurolândia, como diz Belluzo, na marcha da insensatez, podem salvá-la se mudarem de visão. A lógica é dialética, hegeliana: os alemães são a tese , a antítese e a síntese.

As propostas para evitar o fim de uma fase histórica do capital e do destino dos povos que sofrem as consequências do capitalismo estão sendo produzidas nesse estranho e monocórdico diapasão: a moeda nos salvará! Frau Merkel, a qualquer momento, mudará a sua proposta, dispondo dos recursos do seu país para evitar um derrame nas coronárias do capital em transe. Em suma, são os moedeiros falsos, os ocultos heróis da saga regeneradora do capital. Merkel e todos os demais, lá e cá, sabem disso, pois não se iludem com o dinheiro, pobre finança, incapaz sequer de minorar um quadro de desmonte da situação calamitosa do Ocidente capitalista. No começo eram os títulos “tóxicos” de Wall Street, depois a natureza tão humana dos gregos, exemplo de perdulários, pouco dedicados ao trabalho pertinaz das formigas irmãs de d. Merkel. A crise é, nesse compasso, um repositório de vicissitudes humanas. O dinheiro fácil das hipotecas regava os jardins das mansões da periferia urbana dos grandes conglomerados norte-americanos.

O saudável americano revelou-se um consumidor desatinado, pronto a aceitar os títulos duvidosos que revelavam uma composição equívoca. A situação não escapa à observação de Beluzzo: “Fecundada nas entranhas da desregulamentação e legitimada pelas patranhas acadêmicas dos mercados eficientes, a organização da finança contemporânea gerou uma bateria de incentivos perversos.” A explicação, ou teoria, se quisermos, revela, a senso contrário, que o capital é bom, mas a finança e a patranha dos donos do dinheiro o desnaturam. Nada mais agradável aos teóricos do capitalismo do que esse deslocar do núcleo teórico da teoria das crises para divagações que distanciam, desfiguram, descentram a natureza capitalista das crises.

Essa crise não surgiu ontem como um raio em céu azul. Desde 1973, o mundo capitalista está perdendo o seu felino fôlego, afirma Robert Brenner em texto de longa e fundamentada análise, “A Economia da Turbulência Global,” onde expõe o contínuo retrocesso (dowturn) do capitalismo, numa série de crises setoriais, prelúdio à crise global . A perspectiva histórica é imprescindível se quisermos conhecer desta crise mais do que interesses e objetivos das personalidades em confronto.

O Modo Capitalista de Produção une as três esferas em que se divide o capital, o financeiro, irmão gêmeo da Revolução Industrial britânica, o mercantil, e o produtivo (industrial). O capital industrial é a matriz da mais-valia . O capital financeiro (Geldhandlungskapital) só possui a sua forma na moeda. Evidentemente, vive da produção da mais-valia. Sem ela ou com o decréscimo do setor produtivo, a sua relação com a moeda (ouro ou medida aceita de valor) declina ou torna-se inútil como meio de financiar a produção.

A economia burguesa, dos clássicos a Keynes e aos marginalistas, busca camuflar a natureza peculiar do capitalismo, ou seja, a de uma relação social que obtém do trabalhador a sua força de trabalho, em parte sem pagamento em dinheiro ou qualquer outro meio equivalente. A crise tem um efeito inegável: impede a reprodução do capital. De qual dos ramos? Da produção de moeda e financiamento da produção? Do mercantil, obstruindo o intercâmbio? Ou da produção em excesso que não encontra demanda correspondente? Produz-se mais, ou pode-se produzir muito mais, porém vende-se menos.

Desde Reagan e Thatcher, a classe trabalhadora foi derrotada no Ocidente capitalista. A queda na remuneração dos operários, dos trabalhadores em geral desceu a níveis muito baixos, a inflação, por sua vez, não ocorreu em níveis preocupantes, o que permitiu aumentar as taxas de lucro durante alguns anos entre 1973 e o presente. Mas o incremento do desemprego e inflação mais baixa foram solapando o capital na sua entranha mais sensível: a taxa de lucro. Retornemos a Brenner: “As baixas taxas de inflação e desemprego do período recente são comuns, pois constituem resultado direto do extraordinário decréscimo do crescimento da demanda e dos custos do trabalho (wage custs). O fraco crescimento da demanda agregada é evidente no crescimento do GDP”. Brenner refere-se ao período dos anos noventa e aos Estados Unidos, mas é evidente que a observação vale como apreciação dos acontecimentos atuais, se levarmos em conta o baixo produto norte-americano nos últimos anos.

O índice Financial Times Brookings Tiger mostrou, (FT de 18/6), que o crescimento está paralisado depois de uma recuperação inicial da crise econômica de 2008-2009. O crescimento nos Estados Unidos estava regredindo, grande parte da Europa está em recessão, o crescimento chinês esfriou, o processo de reforma na Índia não progride, e outras grandes economias emergentes reduziram a velocidade”.

*Procurador de Justiça aposentado