Lucíola

O romance Lucíola inaugura a trilogia que José de Alencar chamou de “perfis de mulheres” (com Diva e Senhora). Este ano, este romance notável completa 150 anos: foi publicado originalmente em 1862. Prosa Poesia e Arte comemora a data transcrevendo, aqui, o capítulo 21, final, do romance . Boa leitura!

Por José de Alencar

José de Alencar

Era um domingo.

O novo ano tinha começado. A bonança que sucedera às grandes chuvas trouxera um dos sorrisos de primavera, como costumam desabrochar no Rio de Janeiro entre as fortes trovoadas do estio. As árvores cobriam-se da nova folhagem de um verde tenro; o campo aveludava a macia pelúcia da relva, e as frutas dos cajueiros se douravam aos raios do sol.

Uma brisa ligeira, ainda impregnada das evaporações das águas, refrescava a atmosfera Os lábios aspiravam com delícias o sabor desses puros bafejos, que lavavam os pulmões fatigados de uma respiração árida e miasmática. Os olhos se recreavam na festa campestre e matutina da natureza fluminense, da qual as belezas de todos os climas são convivas.

Subia a passo curto e repousado a ladeira de Santa Teresa, calculando a hora de minha chegada pelo despertar de Lúcia; o meu pensamento porém abria as asas, e precedendo-me, ia saudar a minha doce e terna amiga.

Havia oito dias que Lúcia não andava boa. A fresca e vivace expansão de saúde desaparecera sob uma langue morbidez que a desfalecia; o seu sorriso, sempre angélico, tinha uns laivos melancólicos, que me penavam. Às vezes a surpreendia fitando em mim um olhar ardente e longo; então ela voltava o rosto de confusa, enrubescendo. Tudo isto me inquietava; atribuindo a sua mudança a algum pesar oculto, a tinha interrogado, suplicando-lhe que me confiasse as mágoas que a afligiam.

— Não digas isso, Paulo! respondia com um tom de queixa. Posso ter pesares junto de ti? É uma ligeira indisposição; há de passar.

De bem longe avistei Lúcia que me esperava e me fez um aceno de impaciência; apressei o passo para alcançar o portão do jardim. Ela estendeu-me as mãos ambas risonha e atraindo-me, reclinou-se sobre o meu peito com um gracioso abandono. Sentamo-nos nos degraus da pequena escada de pedra, e informei-me de sua saúde.

— Já estou boa. Não vês? Realmente as rosas de suas faces viçavam; era cintilante o brilho que desferia a sua pupila negra. Pelos lábios úmidos lentejava a onda perene de um sorriso, que orvalhava-lhe o semblante de luz e graça.

— Ainda bem! Já me habituaste a só achar bonito aquilo que vejo através do teu mimoso sorriso. Agora é que eu começo a gozar desta linda manhã.

Trocamos ainda algumas palavras.

De repente Lúcia atirou-se a mim. Com uma arrebatada veemência esmagou na minha boca os lábios túrgidos, como se os prurisse fome de beijos que a devorava. Mas desprendeu-se logo dos meus braços, e fugiu veloz' ardendo em rubor, sorvendo num soluço o seu último beijo.

Fugiu, e ao passar fechou a porta que comunicava com o interior.

Contrariado por este obstáculo, consolei a minha impaciência com o sabor a esperança que se insinuara no meu coração. A fúria amorosa dos primeiros tempos, recalcada por uma força misteriosa, despertava. Outra vez a febre voluptuosa nos arrebataria para abrir-nos a mansão do prazer e dos mágicos deleites.

A minha esperança afagava-me tanto mais risonha, quanto desde o momento cruel em que vira Lúcia quase morta nos meus braços, nunca mais a ponta mimosa do seu lábio roçara sequer pelo meu, ávido de carícias. O seu beijo quase de irmã apenas de longe em longe bafejava-me a fronte; e isso mesmo depois de ter-me cerrado as pálpebras com a mão, para que eu não visse arder o lacre de suas faces.

A porta abriu-se enfim.

Lúcia apareceu trazendo a irmã pela mão. Sua fisionomia e atitude reslumbravam já a casta serenidade, que obrigava quantos a cercavam agora, a uma doce e terna veneração. Procurei debalde, sob essa calma aparência, um vestígio das emoções recentes; a tranqüilidade vinha do intimo, exalava dos seios d'alma, e difundia-se brandamente por toda a sua pessoa. Julgaria que nada tinha passado, se as lágrimas já estanques não houvessem empanado a habitual limpidez de seu olhar.

Ana adiantou-se para mim, e dando-me a mão como costumava, apresentou rubescente a fronte pura e angélica. Admirado não sabia o que fizesse, quando por cima da loura cabeça da menina vi o gesto imperativo de Lúcia. Toquei com os lábios a raiz daqueles cabelos sedosos que ondulavam com o sopro de minha respiração. Ana teve um estremecimento intimo; e banhou-se na onda de púrpura que descendo-lhe da fronte, derramou-se pelas espáduas, roseando a branca escumilha.

— É assim que se deve dizer adeus quando se quer bem! exclamou Lúcia abraçando a irmã.

Partimos para a missa, como de costume. Lúcia e a irmã com os braços enlaçados, eu a alguma distância, passando por desconhecidos que seguiam o mesmo caminho. Mas de longe mesmo, um olhar rápido trocado a furto, um gesto imperceptível, nos aproximava um do outro no meio da multidão.

Ambas trajavam de preto, com véus espessos; elas sentiam quanto é tocante o uso de só penetrar na casa de Deus ocultando a beleza sob a gala triste e grave, que prepara o espírito para o santo recolho.

De volta da missa, tomaram de novo as suas alvas roupas de cassa, e vieram sentar-se junto de mim; porém Lúcia que costumava ficar entre nós, trocou o lugar com a irmã. Toda a nossa vida era tão igual, e sucedia-se com tal regularidade, que essa circunstância não me podia escapar.

Apesar da separação, em que não tinha de todo perdido a minha fagueira esperança, aproveitava o momento em que a menina voltava o rosto, para suplicar Lúcia com um gesto; ela respondeu com um olhar de tão fria severidade que gelou-me.

— Ana, vai mandar deitar o almoço. Paulo hoje acordou muito cedo!

Acompanhou com os olhos a irmã até que ela desapareceu no fundo do corredor; e voltou-se para mim séria e recolhida:

— Foi uma loucura! Esqueçamos esse momento, Paulo.

— Se tivesses verdadeira afeição a teu amigo, Maria, não o tratarias com tanta severidade!

— Paulo! Paulo… Tu bem sabes que com esta palavra me farias cometer crimes, se crimes fossem necessários para te provar que eu só vivo da vida que me dás, e me podes tirar com um sopro. Não sou eu criatura tua? Não renasci pela luz que derramaste em minha alma? Não és meu senhor, meu artista, meu pai e meu criador?

Fez-me um gesto para que não a interrompesse.

— Tu podes me fazer voltar à treva de que me arrancaste; podes estancar as fontes de minha existência que manam de tua alma; e não me hás de ouvir uma só queixa. A dor, como a alegria, serão sempre benditas, porque virão de ti. Mas, Paulo, a súplica do humilde não ofende. Deus a permite e exalça. Não me retires a graça e a bênção que me deste! Salva-me, Paulo! Salva-me de ti. Salva-me de mim mesma!…

Deixou-se cair a meus pés, e sua voz espedaçou-se num grito pungente:

— De mim que não terei forças para resistir, se a tua coragem me não exaltar.

Ergui-a, fazendo-a sentar nos meus joelhos. Ela deixou-se atrair, com meiga confiança. Seu instinto sutil lhe dizia que não devia temer naquele momento; adivinhava o respeito e a unção de que minha alma a envolvia, santificando-a.

— Maria, minha amiga, sossega! Se for preciso, eu terei força por nós ambos. Perdoa-me, porque te ofendi; não soube resistir. Não sucederá mais nunca, eu te prometo! Recobra o teu sorriso celeste, que me purifica!

Lúcia sorriu; nesse sorriso banhou-se minha alma e eu a senti melhor e mais pura.

— Tu és bom, como Deus, que me deu a ti, Paulo, para não esperdiçar as sobras de tua alma. Tu deves ler dentro de mim, e compreender o que eu não sei dizer, o que não sei nem mesmo pensar. A vida como tu ma fizeste é a bem-aventurança, porque vivo já no céu. Entre nós ambos nada existe; tu me absorves em ti, somos um: em torno de nós só Deus que nos protege, que nos une, e envolve-nos com um único de seus olhares. Tu, Paulo, tu podes tocar a terra sem quebrar essa coesão de nossas almas; porque sou uma coisa tua, uma porção de teu ser; porque te pertenço e te sigo fatalmente; porque na terra, como no céu, longe ou perto, vivo de tua vida. Mas tua Maria, o reflexo de tua luz e a flor de tua seiva, se ela caísse no pó, se desprenderia de ti para sempre… Como aqueles a quem o Senhor abandona na hora extrema! Compreendes, Paulo, compreendes !

Respondi apenas com o olhar; a voz me falecia, tanto aquelas palavras tocantes de Lúcia me comoviam.

— Se estivesses junto de mim durante aquela eternidade de vinte dias em que me deixaste só com a minha consciência, verias que martírio foi o meu, quando eu queria erguer-me do abismo para abrigar-me e esconder-me em ti; mas sentia a tua própria mão que me repelia e precipitava de novo! Verias também no meu rosto quanto horror me causava a só ideia de que eu talvez trouxesse já nas entranhas o verme que me devia roer as vísceras. Que importa que esse verme fosse gerado do teu e do meu sangue? Ele me arrancaria uma porção deste espírito que é teu, e criara uma vida nova nesta carne que já morreu, e não pode ressuscitar para sentimento algum!

Ana veio chamar-nos para almoçar.

Saindo da mesa, dávamos habitualmente algumas voltas pelo jardim: elas colhendo flores para os vasos, eu fumando o meu charuto. Às dez horas pouco mais ou menos entrávamos. Lúcia levava-nos então para o seu toucador bem pobre e bem modesto, mas ainda assim encantador, como tudo que essa mulher tocava com as pontas de seus dedos de fada ou bafejava com o seu hálito celeste.

Então Lúcia ocupava-se em anelar os cabelos louros da irmã e a toucá-la com tanto esmero como se a preparasse para alguma festa esplêndida; essa festa era a nossa intimidade, que Ana alegrava com o seu sorriso e inocência Depois de ter posto a irmã tão bonita, quanto ela caprichava em tornar-se simples, fazia-me admirar aquela formosura infantil e gozava do prazer que nos fazia sentir. Durante o seu trabalho, eu lia para ambas alguma página de literatura, ou falava sobre um tema agradável.

Nesse dia porém a ordem de nossa comum existência fôra perturbada. Lúcia chamou-me para ajudá-la a pentear a irmã: fez-me sentar ao lado; deu-me a segurar um após outro os lindos anéis que se enroscavam entre os seus dedos; e rindo e folgando afagava-me o rosto com a nuvem desses cabelos finos e sutis, e obrigava-me a beijar as pontas. O que ela exigiria de mim que eu não fizesse para vê-la feliz do seu desejo satisfeito?

As duas horas costumava eu sair e fazer um passeio pelo encanamento. Esse caminho estava tão cheio da imagem de Lúcia, que deixando-a em casa um momento, parecia-me que ela me acompanhava, que eu sentia a pressão do seu braço no meu e a frescura embalsamada do seu hálito na minha face; ao mais leve estremecimento das folhas supunha ouvir o rugir da seda de seu vestido. Trazia do meu passeio alguma flor silvestre, uma borboleta, qualquer coisa, colhida em sua intenção para dizer-lhe que me lembrara dela: eram relíquias para o seu coração.

Quando cheguei, Lúcia estava só no jardim, debaixo de uma espessa e sombria latada de maracujás, tão absorvida em sua meditação que não me percebeu.

— Onde andava este pensamento tão longe de mim? disse-lhe sentando-me ao lado.

Sobressaltou-se, e abanou a cabeça sorrindo:

— Longe de ti?… Estava fazendo projetos para a nossa felicidade.

— Já não é ela uma realidade, Maria?

— E por isso, porque eu sei o que ela vale, receio que não dure sempre. Tu vives num mundo, Paulo, onde há condições que serás obrigado a aceitar, cedo ou tarde; um dia sentirás a necessidade de criar uma família, e gozar das afeições domésticas.

— Não me casarei nunca!

— Agradeço-te essa palavra; mas recuso o sacrifício. Se a tua bondade por mim não te cegasse neste momento, me darias razão. Há sentimentos e gozos que ainda não sentiste, e só uma esposa casta e pura te pode dar. Por mim te havias de privar de tão santas afeições, como são o amor conjugal e o amor paterno ?

— Assim, eram estes os projetos que fazias sobre a nossa felicidade? repliquei com um sorriso amargo. Se essa necessidade de que falas é tão forte que ninguém se pode esquivar a ela, o que eu contesto, nunca pensei que fosses tu que a lembrasse.

— Escuta-me primeiro, Paulo, meu amigo; depois pune-me, se eu merecer, mas não retires de mim o teu olhar. Pensas que essa idéia de que um dia me poderás abandonar por uma mulher a quem deverás consagrar toda a tua vida, não me tortura? Se assim fosse, por que me preocuparia com isto? É porque temo essa desgraça, que refletia no meio único de evitá-la.

— E esse meio?. . . Qual é ele? Dize-me.

— Ana! respondeu Lúcia timidamente.

Não compreendi.

— Poderias escolher uma noiva rica, de alta posição, porém não acharás alma tão pura, nem mais casto amor.

— Queres casar-me com Ana ? Com tua irmã, Maria ?

— Quero uni-la ao santo consórcio de nossas almas. Formaremos uma só família; os filhos que ela te der, serão meus filhos também; as carícias que lhe fizeres, eu as receberei na pessoa dela. Seremos duas para amar-te; uma só para o teu amor. Ela será tua esposa; eu completarei todas as outras afeições de que careces, serei tua irmã, tua filha, tua mãe!

— E podes dispor assim dos sentimentos de Ana?

— Era preciso que ela não vivesse comigo, para deixar de amar-te! Já te ama. Não sabes então que o meu pensamento e a minha alegria têm sido formar aquela alma pelo molde da minha?

— Tudo isto é um sonho teu, minha amiga! Vivamos com a realidade; e deixemos vir um futuro que pertence a Deus.

— Por que este sonho não se realizaria, querendo tu? Seria a consagração da minha felicidade. Sim; não há sacrifício de minha parte. Ana te daria os castos prazeres que não posso dar-te; e recebendo-os dela, ainda os receberias de mim. Que podia eu mais desejar neste mundo? Que vida mais doce do que viver da ventura de ambos? Ana se parece comigo; amarias nela minha imagem purificada, beijarias nela os meus lábios virgens; e minha alma entre a sua boca e tua gozaria dos beijos de ambos. Que suprema delícia…

Lúcia calou-se de súbito, empalidecendo. Toda a sua pessoa assumiu-se, tomando a expressão vaga e extática de quem é absorvido por um recolho íntimo: figurava uma pessoa escutando-se viver interiormente. Até que ergueu-se espavorida; soltou um gemido pungente levando a mão ao regaço, e caiu fulminada em meus braços.

O abalo interior que sofrera esse corpo delicado fora tão forte, que a cintura do vestido se despedaçara.

Conduzi Lúcia ao seu leito, e só depois de cruéis angústias tive o consolo de vê-la recobrar os sentidos, mas para cair logo numa prostração, em que apesar dos meus rogos e instâncias, só a ouvia murmurar surdamente estas palavras incompreensíveis:

— Eu adivinhava que ele me levaria consigo!

— Ele quem, minha boa Maria?

— O teu, o nosso filho! respondeu-me ela.

— Como! Julgas ?…

— Senti há pouco o seu primeiro e o seu último movimento!

— Um filho! Mas é um novo laço e mais forte que nos prende um ao outro. Serás mãe, minha querida Maria? Terás mais esse doce sentimento da maternidade para encher-te o coração; terás mais uma criatura com quem repartir a riqueza inexaurível de tua alma!

— Cala-te, Paulo! Ele morreu! disse-me com a voz surda. E fui eu que o matei!

— Para que te afliges assim! Nosso filho vive, há de viver! Não sentiste há pouco o seu primeiro movimento.

Nisto chegou o médico a quem tinha escrito imediatamente, e que depois de examinar o estado de Lúcia, declarou que não inspirava receio. Ela estava ameaçada de um aborto, resultado do choque violento que sofrera, quando conheceu que se achava grávida. O doutor, um dos mais hábeis parteiros da corte, procurou desvanecer os receios de Lúcia, assegurando-lhe que seu filho vivia, e nada ainda fazia recear pela sua vida.

Apenas o médico saiu, ela olhou-me tristemente:

— Era o primeiro! Mas o tato das entranhas maternas, sejam elas virgens ainda, não engana. Nosso filho, Paulo, o teu, porque ele era mais teu do que meu, já não existe.

À noite declarou-se a febre; uma febre intensa que a fez delirar. Foi então que conheci quanto eu vivia no seu pensamento: ela não disse no delírio uma só palavra que não se referisse a mim e a alguma circunstância de nossa vida mútua, desde o primeiro dia em que nos encontramos.

Pela manhã, depois de um sono curto e agitado, achei-a mais tranqüila:

— Tu me prometes, Paulo, casar com Ana!

— Não tratemos disso agora, minha amiga! Quando ficares boa, tudo o que tu quiseres eu farei para a tua felicidade.

— Mas essa promessa me daria tanto agora!

Escuta, Maria, esse casamento nos tornaria infelizes a ti, à tua irmã, e a mim que não poderia amá-la, mesmo por causa dessa semelhança! Tu viverias sempre entre mim e ela!

— Pois bem, promete-me que se ela não for tua mulher, lhe servirás de pai.

— Juro-te!

Beijou-me as mãos:

— Ela vai ter tanta necessidade de um pai!

Os acessos de febre repetiram-se durante três dias, e sempre mais graves. Uma tarde em que o médico apresentou a Lúcia um remédio:

— Para que é isso? perguntou ela com brandura.

— Para aliviá-la do seu incomodo. Logo que lançar o aborto, ficará inteiramente boa.

— Lançar!… Expelir meu filho de mim?

E o copo que Lúcia sustentava na mão trêmula, impelido com violência, voou pelo aposento e espedaçou-se de encontro à parede.

— Iremos juntos'… murmurou descaindo inerte sobre as almofadas do leito. Sua mãe lhe servirá de túmulo.

De joelhos à cabeceira eu suplicava-lhe que bebesse o remédio que a devia salvar.

— Queres acompanhar teu filho, Maria, e abandonar-me só neste mundo. Vive por mim!

— Se eu pudesse viver, haveria forças que me separassem de ti? Haveria sacrifício que eu não fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade? Mas Deus não quis. Sinto que a vida me foge!

A instâncias minhas bebeu finalmente o remédio, que nenhum efeito produziu. A febre lavrava com intensidade; eu já não tinha esperanças.

— O remédio de que eu preciso é o da religião. Quero confessar-me, Paulo.

Lúcia tomou os sacramentos com uma resignação angélica; e abraçando a irmã, disse-lhe:

— Perdes uma irmã, Ana; fica-te um pai. Ama-o por ele, por ti e por mim.

O dia se passou na cruel agonia que só compreendem aqueles que ajoelhados à borda de um leito viram finar-se gradualmente uma vida querida.

Quebrado de fadiga e vencido por uma vigília de tantas noites, tinha insensivelmente adormecido, sentado como estava à beira da cama, com os lábios sobre a mão gelada de Lúcia e a testa apoiada no recosto do leito. O sono foi curto, povoado de sonhos horríveis; acordei sobressaltado e achei-me reclinado sobre o peito de Lúcia, que se sentara de encontro às almofadas para suster minha cabeça ao colo, como faria uma terna mãe com seu filho.

Mesmo adormecido ela me sorria, me falava, e cobria-me de beijos:

— Se soubesses que gozo supremo é para mim beijar-te neste momento! Agora que o corpo já está morto e a carne álgida, não sente nem a dor nem o prazer, é a minha alma só que te beija, que se une à tua e se desprende parcela por parcela para se embeber em teu seio.

E seus lábios ávidos devoravam-me o rosto de carícias. bebendo o pranto que corria abundante de meus olhos:

— Se alguma coisa me pudesse salvar ainda, seria esse bálsamo celeste, meu amigo!

Eu soluçava como uma criança.

— Beija-me também, Paulo. Beija-me como beijarás um dia tua noiva! Oh! agora posso te confessar sem receio. Nesta hora não se mente. Eu te amei desde o momento em que te vi ! Eu te amei por séculos nestes poucos dias que passamos juntos na terra. Agora que a minha vida se conta por instantes, amo-te em cada momento por uma existência inteira. Amo-te ao mesmo tempo com todas as afeições que se pode ter neste mundo. Vou te amar enfim por toda a eternidade.

A voz desfaleceu completamente, de extenuada que ela ficara por esse enérgico esforço. Eu chorava de bruços sobre o travesseiro, e as suas palavras suspiravam docemente em minha alma, como as dulias dos anjos devem ressoar aos espíritos celestes.

— Nunca te disse que te amava, Paulo!

— Mas eu sabia, e era feliz!

— Tu me purificaste ungindo-me com os teus lábios. Tu me santificaste com o teu primeiro olhar! Nesse momento Deus sorriu e o consórcio de nossas almas se fez no seio do Criador. Fui tua esposa no céu ! E contudo essa palavra divina do amor, minha boca não a devia profanar, enquanto viva. Ela será meu último suspiro.

Lúcia pediu-me que abrisse a janela: era noite já; do leito víamos uma zona de azul na qual brilhava límpida e serena a estrela da tarde. Um sorriso pálido desfolhou-se ainda nos lábios sem cores: sublime êxtase iluminou a suave transparência de seu rosto. A beleza imaterial dos anjos deve ter aquela divina limpidez.

— Recebe-me… Paulo!…

Terminei ontem este manuscrito, que lhe envio ainda úmido de minhas lágrimas.

Relendo-o, admirei como tivera a coragem de alguma vez, no correr desta história, deixar a minha pena rir e brincar, quando o meu coração estava ainda cheio da saudade, que sepultou-se nele para sempre.

É porque, repassando na memória essa melhor porção de minha vida, alheio-me tanto do presente que revivo hora por hora aqueles dias de ventura, como de primeiro os vivo, ignorando o futuro, e entregue todo às emoções que sentia outrora. Quando eu gracejava, Lúcia estava ainda ao meu lado; ainda eu era feliz da minha lembrada felicidade.

Há seis anos que ela me deixou; mas eu recebi a sua alma, que me acompanhará eternamente. Tenho-a tão viva e presente no meu coração, como se ainda a visse reclinar-se meiga para mim. Há dias no ano e horas no dia que ela sagrou com a sua memória, e lhe pertencem exclusivamente. Onde quer que eu esteja, a sua alma me reclama e atrai; é forçoso então que ela viva em mim. Há também lugares e objetos onde vagam seus espíritos; não os posso ver sem que o seu amor me envolva como uma luz celeste.

Ana casou-se há dois anos. Vive feliz com seu marido, que a ama como ela merece. É um anjo de bondade; e a juventude realçando-lhe as graças infantis, aumentou a sua semelhança com a irmã; porém falta-lhe aquela irradiação intima de fogo divino. Almas como as de Lúcia, Deus não as dá duas vezes à mesma família, nem as cria aos pares, mas isoladas como os grandes astros destinados a esclarecer uma esfera.

Cumpri a vontade de minha Lúcia; tenho servido de pai a essa menina; com a sua felicidade paguei um óbolo de minha gratidão à doce amiga que tanto amou-me.

Estas páginas foram escritas unicamente para a senhora. Vazei nelas toda a minha alma para lhe transmitir um perfume da mulher sublime, que passou na minha vida como sonho fugace. Creio que não o consegui; por isso fecho aqui alguns fios da trança de cabelos, que cortei no momento de dizer o último adeus à sua imagem querida.

Há nos cabelos da pessoa que se ama não sei que fluido misterioso, que comunica com o nosso espírito. A senhora há de amar Lúcia, tenho a certeza; talvez pois aquela relíquia, ainda impregnada de seiva e fragrância da criatura angélica, lhe revele o que eu não pude exprimir.

Fonte: Alencar, José de. Lucíola. São Paulo: Ática, 1988