Manuel Domingos Neto: Apoio do Estado aos estudos da Defesa

Estão em curso iniciativas de modernização das Forças Armadas. A Estratégia Nacional de Defesa está sendo revisada e o governo prepara um “Livro Branco de Defesa Nacional” que mostrará sua visão dos cenários em que se inserem os esforços para proteger o país.

Por Manuel Domingos Neto, em Jornal da Ciência

Os investimentos previstos para a produção de armas e equipamentos chegam a mais de 120 bilhões de reais nas próximas décadas. Não é cifra exorbitante, mas ponderável, para uma sociedade com muitas carências. Dispositivos legais recentes oferecem incentivos a esse setor industrial.

O fato é que estão na ordem do dia assuntos cruciais: as possibilidades de agressão ao país, a escolha de novos meios para as Forças, as diretrizes para acordos de cooperação militar internacional, as tendências do comercio de armas, a busca de autonomia tecnológica, o tamanho das corporações, a distribuição espacial dos efetivos, a reforma do ensino militar e a formação de civis especializados em assuntos de Defesa, entre outros.

Tais temas foram tradicionalmente percebidos como exclusivos da alçada militar, mas excedem as corporações, já que repercutem no desenvolvimento do país e em sua inserção no jogo global de forças. A Defesa tem reflexos inequívocos sobre as perspectivas da sociedade. O senso comum não atina, mas nenhum domínio da vida social, em qualquer tempo ou lugar, está imune aos efeitos da montagem e manutenção dos instrumentos de força do Estado. Mesmo os militares nem sempre podem captar plenamente os desdobramentos multifacetados de sua própria função.

Cabe à universidade brasileira preparar-se para contribuir com a formulação, acompanhamento e administração das orientações governamentais relativas à Defesa. Para efeito, o primeiro passo é enterrar ideias e posturas desprovidas de senso.

No mundo acadêmico, corporações e assuntos militares foram tidos tradicionalmente como objetos de estudo pouco relevantes. Apenas nos últimos anos surgiram sinais de alteração deste equívoco. O contingente de pesquisadores envolvidos no debate estratégico foi ampliado; alguns vasculham inovadoramente o interior das corporações, a mentalidade e o pensamento dos militares bem como variados temas conexos. Em 2006, foi criada a Associação Brasileira de Estudos da Defesa (ABED), sociedade acadêmica que este ano realiza o seu sexto Encontro anual.

Mas, a rigor, ainda predomina a noção errônea de que não cabe à universidade envolver-se nos problemas da Defesa. É rarefeita e precária a oferta de disciplinas e programas de pós-graduação que tematizem o militar e os assuntos relacionados ao uso da força. Contam-se nos dedos as instituições capazes de ofertar cursos de História Militar, História da Ciência, Sociologia das Corporações Militares, História do Pensamento Estratégico ou Economia da Defesa. Os acervos bibliográficos disponíveis para estes e outros cursos relevantes são pobres e o número de publicações acadêmicas brasileiras, bem como o de projetos de pesquisa em andamento sobre temas da Defesa é irrisório em vista de sua relevância social e política.

Na universidade, há certo estranhamento – para não dizer menosprezo – em relação aos que se dedicam à temática. Persiste a tendência de atribuir tais assuntos à alçada exclusiva de profissionais das armas. Pior ainda, alguns acreditam que civis voltados para esses temas sejam amantes da guerra e dos instrumentos de força, quando não defensores de ditaduras!

As agências de fomento, hoje mais absorvidas com as demandas específicas da comunidade científica que com as necessidades do Estado, não reagem a esta percepção descabida. A CAPES e o CNPq sequer dispõem de comitês assessores habilitados para o julgamento do mérito de propostas de acadêmicos da área. Professores e pesquisadores voltados para esses estudos disputam bolsas e auxílios em desvantagem com colegas de áreas e especialidades científicas consolidadas; seus projetos são julgados a partir de critérios inadmissíveis.

Essa situação prejudica o Estado e a sociedade. Os acadêmicos não podem fechar os olhos para instituições armadas que, bem ou mal, foram e são decisivas na construção do país. Não há Estado sem aparelho de força e a contingência de enfrentamentos é condição de qualquer sociedade que aspire a soberania. Não há motivos para crer que a guerra se torne coisa do passado. A guerra persistirá fenômeno essencialmente político. E os aparelhos militares são dispendiosos e complexos o bastante para que sejam concebidos e manipulados a partir do desígnio exclusivo de seus integrantes.

O quanto e como a sociedade deve gastar com armamentos e corporações militares? Que tipo de arma e de profissional militar a comunidade brasileira precisa para assegurar sua sobrevivência autônoma? Sem pretensões expansionistas, que equipamentos devem ser adquiridos no exterior e em quais poderíamos concentrar recursos para desenvolver em casa? Como e de que jeito o ensino militar deve ser alterado?

Tais questões transcendem a caserna. Sem civis habilitados a discuti-las com propriedade, o poder político tomará suas decisões condicionado por vieses corporativos limitantes e capazes, inclusive, de abrigar práticas perdulárias. Corporações não declinam facilmente de veleidades autárquicas, mesmo que em prejuízo da eficácia e da economia de recursos públicos. As Forças Armadas brasileiras resistem à cultura de integração de esforços. Por alongadas décadas cada Corporação quis manter um ministério para si. Apenas há dois anos foi criado, no âmbito do Ministério da Defesa, o Estado-Maior Conjunto.

O olhar civil abalizado é indispensável para o bom entendimento em matéria de Defesa. Quando vontades corporativas não se afinam, resta ouvir vozes mais distanciadas. Não por outra razão, definições centrais das estratégias militares das grandes potências são entregues a civis adrede preparados. Interessante observar que, se em Harvard um professor pode propor com naturalidade, na ementa de seu curso, a questão “como controlar o poder militar?”, na universidade brasileira isso soaria exótico e certos oficiais tomariam como “provocação”.

Os militares brasileiros reclamam investimentos e apontam o sucateamento das Forças. Entretanto, não está claro se a atual estrutura de gastos em Defesa é a melhor. Não constam disponíveis estudos sobre desperdícios resultantes de sobreposição de propósitos. A ideia de uma Universidade da Defesa que contemple necessidades comuns e específicas das corporações não é seriamente cogitada. A possibilidade de conjugação de serviços demandados pelas corporações é sempre contraposta pela arguição enfática de suas especificidades. Esses argumentos não podem ser postos a prova sem pesquisas acuradas e reflexões abrangentes.

O Poder Executivo precisa de civis intelectualmente autorizados para discutir e contribuir adequadamente com a gerência dos intrincados assuntos militares. As organizações militares, o Parlamento e o Judiciário, da mesma forma. Como a formação de especialistas não ocorre da noite para o dia, cabe cuidar o quanto antes. Esses profissionais assegurariam melhor a dinâmica administrativa que oficiais cujas demandas de carreira os obrigam a constantes movimentações.

A ausência de um sólido contingente acadêmico especializado na Defesa acarreta problema sobremaneira grave: as diretrizes estratégicas e as formulações concernentes ao aparelho militar tendem a incorporar pressupostos, premissas e conceitos emanados de potências que, de longa data, investiram forte e continuamente em quadros acadêmicos civis. Cabe ao Estado brasileiro dispor de amparos conceituais e epistemológicos capazes de traduzir adequadamente a percepção da nacionalidade. Neste sentido, o meio acadêmico é insubstituível. A universidade sempre foi celeiro de formulações inovadoras.

Ademais, universidades preparadas para tratar de temas da Defesa ajudariam a viabilizar reformas no ensino militar. A formação do militar moderno tem um pé na corporação e outro na academia civil. No Brasil, o ensino militar guarda resquícios do século XIX: há oficiais que desde criança não conheceram senão o ambiente militar. Em consequência, têm dificuldades para perceber a potencialidade da esfera acadêmica civil em matéria de Defesa. A contribuição da universidade pode ser mais ampla que a produção de conhecimentos sobre novos materiais, engenharias de sistemas, sensoriamento remoto etc. Acadêmicos podem oferecer olhar crítico sobre a dinâmica das relações internacionais, conformação de hegemonias políticas e inúmeros outros temas de grande relevância para o planejamento da Defesa.

Os governantes devem estimular as universidades a abrir espaço para núcleos de pesquisa, departamentos e institutos com pessoal e infraestrutura adequados a oferta de cursos de graduação, mestrado e doutorado voltados para os Estudos da Defesa. Quando a formação do militar brasileiro contemplar naturalmente a passagem pelo mundo acadêmico civil, teremos certamente comandantes mais aptos a compreender os fundamentos e as sutilezas das relações sociais. Suas vozes serão melhor captadas pelo diversificado e maravilhoso mosaico que é a nacionalidade brasileira.

É saudável que o militar e a política de Defesa entrem na agenda política de forma diversa daquela que os brasileiros conheceram ao longo do século XX. Indicação neste sentido é a inédita reunião dos partidos de esquerda (PT, PSB, PCdoB e PDT) dia 4 de junho, em Brasília, para debater os grandes projetos estratégicos. Agora não se trata mais de remoer o saldo das nefastas intervenções castrenses na vida politica, mas de garantir proteção a uma sociedade que se projeta no cenário global.

Que a agenda política contemple o apoio aos Estudos da Defesa nos centros universitários!

* Manuel Domingos Neto é professor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense