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Jô Moraes: O feminismo brasileiro e suas novas formas

Por Jô Moraes*

O movimento de mulheres no Brasil, particularmente suas entidades e articulações feministas têm experimentado importantes modificações em suas formas organizativas. No momento presente, poucas são as entidades estruturadas nacionalmente com caráter de ação de massas, predominando, na fase atual do feminismo brasileiro as articulações e redes temáticas como expressões orgânicas desse movimento.

Rodando pelo país como presidente da CPMI da Violência Contra a Mulher é possível verificar-se esse fenômeno através das reuniões que são feitas com o movimento de mulheres em cada estado. Há uma presença bem diversificada de núcleos de estudos, grupos feministas de prestação de serviços, redes temáticas, militantes partidárias organizadas e representantes do movimento sindical. Enquanto movimento ou entidade de caráter nacional vem comparecendo, na maioria das reuniões, a União Brasileira de Mulheres, a Marcha Mundial, a Rede Feminista de Saúde e Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos e de forma menos frequente, a Liga Brasileira de Lésbicas. Embora sejam essas as organizações que têm comparecido às audiências da CPMI, atuam no plano nacional outras entidades com diferentes focos de preocupação, como a Articulação das Mulheres Brasileiras, a Confederação Brasileira de Mulheres, as Mulheres de Carreira Jurídica, as Mulheres de Negócio, o Fórum de Mulheres do Mercosul, o CFMEA, o Fórum Nacional de Instâncias de Mulheres dos Partidos Políticos, entre outras.

À luz da experiência, pode-se fazer uma comparação das diferenças existentes entre esses movimentos e demais organizações populares do nosso país, como as entidades sindicais, corporativas e estudantis. Estas entidades têm uma estabilidade e duração nas suas estruturas organizativas bem diferentes do movimento de mulheres e movimento feminista. A maioria delas tem mais de meio século de existência.

Percebe-se que, a cada mudança em suas demandas prioritárias, os movimentos de mulheres e movimentos feministas apresentam novas formas de organização correspondendo às necessidades do momento. Temos exemplos variados sobre esse fenômeno que ocorre, inclusive com certos movimentos de mulheres que, embora não assumindo bandeiras feministas, atuam de forma organizada. É o caso do Movimento das Donas de Casa, que defende os direitos do consumidor, de destacada atuação na sociedade durante certo tempo. É o caso também, em alguns estados onde não havia rede pública que atendesse a criança de 0 a 6 anos, do Movimento de Luta Pró-Creche, existente em algumas periferias das grandes cidades.

Debruçar-se sobre o fenômeno da instabilidade estrutural, pulverização e multiplicação orgânica dos movimentos de mulheres e movimentos feministas é o caminho para uma melhor definição das estratégias de luta.

Para referenciarmos na experiência apenas a partir do século passado, comecemos com o sufragismo e sua forma de “movimento”, predominantemente inorgânico, em torno do direito ao voto feminino. Lembremos a Federação Brasileira de Mulheres, entidade de meados do século passado que se integrou à luta democrática e nacionalista existente no país com a Segunda Guerra. Há pouco registro da luta organizada das mulheres em torno de suas bandeiras específicas no período que vai de Juscelino aos primeiros anos 60 quando ocorreu o golpe militar.

Durante a fase ditatorial e depois, na transição democrática, período esse que durou quase duas décadas, as mulheres se incorporaram às diversas formas de resistência à ditadura, das organizações revolucionárias que realizaram a luta armada até as expressões de resistência cultural. Nesse processo, assumiu relevância o Movimento Feminino pela Anistia, sua expressão orgânica mais específica.

O Movimento Contra a Carestia, estruturado majoritariamente por mulheres, corresponde à transição democrática e se articulava em torno de bandeiras econômicas, particularmente dos altos preços do custo de vida e das perdas inflacionárias do período.

É nessa fase que surgem com muita força e de forma mais estruturada os grupos e organizações feministas que contribuem para a intensificação do debate teórico em torno da opressão de gênero. Ao mesmo tempo, as lideranças sindicais femininas começam a batalha para que suas reinvindicações específicas sejam incorporadas às pautas de negociação e se criem espaços de representação feminina nas diretorias das entidades.

A redemocratização do país, embora limitada no seu alcance, pela direção conservadora que predominou no período, possibilitou o surgimento de inúmeras entidades, movimentos e grupos com bandeiras que representavam os anseios das brasileiras. Foi a partir desse período que se fortaleceu o movimento feminista.

Desencadeia-se um intenso debate teórico sobre o feminismo e suas diferentes concepções. Os núcleos de estudos criados nas universidades federais contribuíram destacadamente para isso. Esta foi uma fase onde ocorreu um grande número de mobilizações nas ruas e em plenárias nacionais acompanhando a dinâmica do movimento feminista global. A intensificação da atividade pública se dá, particularmente a partir dos encontros mundiais que se realizaram após o Ano Internacional da Mulher, em 1975, e da redemocratização do país. As mais destacadas movimentações se deram em defesa dos direitos da mulher na constituinte, o chamado “Lobby do Batom”, em 1988, quando uma grande polêmica se deu em torno da licença maternidade de 120 dias. Deram-se também no enfrentamento à violência contra a mulher com o movimento “Quem Ama Não Mata” em suas diferentes expressões pelo país a fora.

O novo momento da democracia brasileira, com a eleição de Lula, impõe maior protagonismo da sociedade para subverter os valores estratificados do período neoliberal anterior. A reeleição de um operário para conduzir o governo do país significou a confiança da parte excluída da população brasileira, em buscar seus próprios caminhos para superar os impasses do seu desenvolvimento e suas desigualdades seculares.

No que se refere às demandas femininas passa a ter prevalência a luta pela incorporação das mulheres nas instâncias de poder e a criação de políticas públicas de gênero como componente decisivo da democratização da estrutura política do Estado brasileiro. Os primeiros movimentos se dão com a aprovação de cotas para as chapas proporcionais através das leis 9.100/95 e 9.504/97. Este processo ganha mais um componente com a aprovação, nas mudanças da legislação eleitoral de 2009, da indicação de recursos do fundo partidário para atividades de formação das mulheres pelos partidos políticos e de tempo de TV para lideranças femininas.

É um período onde as organizações que conduzem essa luta são predominantemente a militância partidária através de suas parlamentares, suas secretarias e departamentos dos partidos políticos além das entidades de consultoria como a CFMEA, as Redes e Articulações de Mulheres de caráter nacional.

Passos significativos são dados na incorporação de políticas de gênero nas instâncias de poder. São aprovados o Plano Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres e o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher, durante o governo do presidente Lula. Reproduzem-se os organismos específicos para implementação de políticas de gênero nas estruturas administrativas, embora em número muito limitado. É um período em que as entidades feministas e os órgãos públicos se aproximam através da integração, em estruturas do estado, de seus melhores quadros.

A eleição da primeira presidenta da república, a presença de 10 mulheres nos seus principais cargos coloca, cada vez mais em evidência, a bandeira da inclusão da mulher nas instâncias de poder. Ao mesmo tempo, assume uma visibilidade grande a luta pelo enfrentamento à violência contra a mulher, em decorrência da visibilidade do tema com o acirramento da crueldade dos crimes cometidos e com as exigências de que o estado brasileiro assuma suas responsabilidades previstas em lei.

Na recomposição da experiência desse último século, alguns ensinamentos poderão ser tirados:

a) Na maioria dos momentos em que o país sofreu ameaças autoritárias ou anti-nacionais, as mulheres se incorporaram aos movimentos democráticos e nacionalistas, cujos exemplos maiores foram a Federação Brasileira de Mulheres e o Movimento Feminino pela Anistia e cuja excepcionalidade foi a Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade;

b) A consciência da opressão específica da mulher e sua expressão em lutas organizadas surgem, especialmente, a partir do período de redemocratização. E têm nos grupos e entidades feministas os protagonistas de seu aprofundamento e de suas mobilizações;

c) A experiência indica que, os grandes movimentos incorporados pelas mulheres em estruturas específicas se dão: em torno de bandeiras democráticas e nacionais; em torno de sua inclusão nas instâncias de poder e de demandas de políticas de gênero; em torno das reivindicações das trabalhadoras em apoio à sua maternidade e contra o assédio moral; em torno de seus Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos; e em torno do enfrentamento à violência contra a mulher. As demais bandeiras específicas se dão de forma pontual e fragmentada.

d) As organizações e entidades de mulheres têm, na sua trajetória, uma marca de ampla diversidade e instabilidade estrutural. Apresentam ciclos de mobilizações que são impulsionados por fatos ou situações concretas de um determinado período. A força dessas movimentações depende da capacidade de se articularem entre diferentes organizações.

Analisando todo esse processo as entidades emancipacionistas deverão levar em conta essas particularidades estabelecendo sua pauta em consonância com a experiência, compreendendo a necessidade de articulação com outras entidades da sociedade civil e buscando enfrentar a tendência à instabilidade estrutural com a formação de um sólido núcleo de direção.

*Jô Moraes é presidenta do PCdoB-MG e deputada federal