César Bolaño: Sobre Furtado e a Cultura

O professor Gabriel Cohn publicou, no jornal Valor Econômico de 13 de abril, um pequeno artigo “em torno da polêmica política cultural”. Um texto correto, ponderado, esclarecedor. Mas há uma referência a Celso Furtado que talvez merecesse algum esclarecimento. Não me interessa voltar à discussão sobre a criação do Ministério da Cultura, que, como reconhece o professor, “está aí para ficar, para o bem ou para o mal”.

Por César Bolaño*

Nem pretendo defender aqui a atual política cultural do Governo, mesmo estando convencido da sinceridade da secretária Claudia Leitão na defesa de “uma concepção abrangente de cultura como foco de políticas, centrada na ideia de criatividade”, como bem define Cohn, a visão do próprio Furtado. O esclarecimento que me parece necessário é sobre o fato de que coube a este, “a concepção básica das leis de incentivo (batizadas na origem com o nome do então presidente Sarney, para depois se converter em Lei Rouanet)”.

É verdade. A concepção básica foi de Celso Furtado. Mas os princípios e o projeto por trás da mesma foram essencialmente modificados na passagem da Lei Sarney para a Lei Rouanet. O projeto de Furtado era de desamarrar a cultura, recém-saído o país do intervencionismo estatal dos governos militares, e abrir as comportas da criatividade, numa perspectiva não diferente daquela “ampla e generosa, de cunho antropológico”, de Gilberto Gil e Juca Ferreira, que o professor defende. Assim, na entrevista ao programa Roda Viva, à época, ficava claro que a pretensão de Furtado era facilitar ao açougueiro do bairro, financiar a construção do palco do grupo de teatro da esquina.

Não se descartava, por certo, como Juca e Gil tampouco descartaram, o financiamento a grandes empreendimentos culturais, mas o princípio era fundamentalmente democratizante. Muito diferente do que passaram a ser as leis de incentivo a partir do momento em que, no Governo Collor, a renúncia fiscal não poderia já ser concedida a empresas cujo lucro fosse declarado pelo valor presumido.

Esse detalhe, que facilitou a brutal concentração dos incentivos que hoje conhecemos, invertendo a proposta inicial, jamais foi alterado posteriormente. Se uma correção de rumos nas políticas culturais no Brasil é necessária, trata-se justamente de retomar o conceito de Cultura de Furtado, entendendo-a como elemento axial da política de desenvolvimento, ou do “verdadeiro desenvolvimento”, como ele diria nos anos 70, que exige aquela autonomia cultural, difícil de conquistar num país marcado por um processo de modernização, primeiro, e de industrialização, depois, caracteristicamente imitativo e dependente.

E não se trata apenas da cultura material, central na reflexão de Furtado. O problema da autonomia se relaciona essencialmente, para ele, à questão da cultura no seu sentido mais estrito e nessa perspectiva deixa claro, em trabalho justamente do período em que esteve à frente do MinC, que é no reconhecimento dos elementos não europeus da nossa formação que se deve buscar o diferencial, o específico da nossa identidade e, portanto, a fonte cristalina da inovação, da criatividade e da autonomia.

*César Bolaño é professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS), presidente da Associação Latino-americana de Investigadores da Comunicação (ALAIC), bolsista do programa Cátedras IPEA-CAPES do Desenvolvimento.