Um laboratório teatral para romper com o preconceito racial

Em entrevista, a diretora teatral Claudia Simone conta sua experiência como atriz e diretora que encarou as opressões que existem sobre afrodescendentes nos diversos segmentos da sociedade, inclusive nas artes. Ela compartilha vivências como Curinga do Centro de Teatro do Oprimido/RJ e a construção do Laboratório Anastácia, iniciativa teatral elaborada para trabalhar as opressões que pesam sobre afro-brasileiros, dentro e fora dos palcos.

Antes de fixar residência na França, a atriz Claudia Simone Santos Oliveira faz um apanhado das experiências vividas em duas décadas de uma carreira marcada por ações culturais e identitárias que encorajam a multiplicação de protagonismos femininos negros em diferentes áreas de atuação. Abaixo, uma entrevista concedida à Ciranda Afro, do coletivo Ciranda Internacional da Comunicação Compartilhada.

Ciranda: Como você chegou ao Teatro do Oprimido?
Claudia Simone: O Teatro do Oprimido apareceu na minha historia de vida quando buscava incessantemente fazer uma arte que fosse questionadora, que buscasse gerar transformações sociais, que não servisse somente ao entretenimento. Um Teatro onde o espaço que eu fosse ocupar estava para além dos papéis convencionais destinados aos afrodescendentes, um teatro que fortalecesse os movimentos sociais de denúncia das condições dos negros no Brasil em todas as áreas. Um teatro que me possibilitasse fazer Teatro, já que esta arte em nossa sociedade capitalista é privilegio de alguns, e não direito de todos.

Ciranda: O encontro com a estética do oprimido influenciou sua descoberta da negritude e construção de uma identidade afro-brasileira?
CS: Completamente. A estética do Oprimido me impulsionou a criar minha própria música, a falar dos meus próprios problemas, a me ver diante do espelho, a arrancar as máscaras e camadas que eu havia assumido durante a vida vivida em uma sociedade que valoriza o modelo branco europeu. Foi um longo caminho estético que percorri, e ainda percorro, para encarar a carga histórica e cultural que carrego em meu corpo e em meus traços. Minha negritude cobriu meus pincéis, coloriu meus textos, soltou minha voz, ativou minha criatividade, me fez buscar iguais, encontrar forças para seguir na luta contra a discriminação e o Racismo. Hoje continuo na construção de minha identidade afro-brasileira. Faço-me diariamente perguntas como: o que é ser NEGRA NO BRASIL? O que é SER NEGRO na Atualidade? Em que aspectos avançamos quando falamos de igualdade étnica? Quais os nossos principais campos de Luta e resistência?

Ciranda: Quais respostas você obtém ao fazer tais perguntas? Qual a sua reflexão sobre ser mulher, afrodescendente e atriz na sociedade brasileira?
CS: Quando penso em mulheres afrodescendentes e atrizes, minhas reflexões recaem sobre a cruel tentativa de visibilizar talentos, estrelas negras, como nossa querida Ruth de Souza e tantas outras. Penso na quantidade de mulheres afrodescendentes que são extremamente brilhantes no palco com Débora Almeida, de Sete Ventos, que com muita garra ocupa seu espaço no cenário artístico Brasileiro. Fortaleço-me na atuação, dentro de fora do palco, de Iléa Ferraz que em todo o seu trabalho resgata a força de nossa ancestralidade e nutre a nova geração de imagens positivas sobre a mulher negra em holofotes que as visibilizam. Parto para luta com Barbara Santos, Curinga Internacional, que por intermédio do Teatro do Oprimido me vez rever minha identidade afrodescendente, questionar -me todos os dias sobre qual é o meu lugar na sociedade, ativar minha necessidade de atuar diretamente no combate ao racismo e à discriminação.

Ciranda: Quais aspectos observados em sua trajetória fizeram pensar na criação do Laboratório Anastácia?
CS: O Laboratório Anastácia surgiu como resposta às varias situações de racismo que eu vivenciei, através do olhar do outro, nas relações étnicas que eu travava, pela afirmação ou negação de minha identidade afrodescendente, pela compreensão da existência do racismo e das desigualdades raciais. Meu desejo e necessidade de ser atriz surgiram desde menina, estar nos palcos e vivenciar diferentes personagens, para mim era vital. Por isso muito cedo ouvi a voz cruel da discriminação: “Você quer ser atriz? Para quê? Representar o papel de escrava, empregada doméstica ou mucama de alguém… (risos de deboche) Em seguida: “De qualquer forma não existe princesa negra”. Esse comentário somou-se a tantos outros que apontavam na mesma direção: a cor da minha pele e o crespo de meus cabelos eram determinantes para a carreira de atriz que pretendia seguir. Na verdade crucial para mim enquanto ser humano.

De fato, esse foi um primeiro espelho de mim mesma, contudo algumas vivências que destaco agora foram o estopim para a criação do Laboratório Anastácia. Quando tinha meus 19 anos, estava deslumbrada por descobrir a história de luta do provo negro, dos movimentos contra o racismo, de resistência. Resolvi procurar o movimento negro em minha cidade (Volta Redonda), pois queria ser militante, me engajar, estar com parceiros, conhecer iguais.

Bati na porta da associação Palmares, a única da cidade. Uma mulher negra de olhos bem grandes e voz seca me atendeu, olhou-me de cima abaixo, com ares de poucos amigos, e perguntou: “o que você faz aqui?” Respondi, ainda com um sorriso nos lábios: “eu quero saber como faço para fazer parte do Palmares, do movimento negro e me engajar na luta contra o racismo”. Ela olhou-me de forma fulminante e disse do alto de sua sabedoria de militante: “Você? Você não é negra, não passa de uma parda sem cor, sem identidade”. Ela seguiu falando e eu já não ouvia mais.

Sentindo-me tão nada, tão pequena, sem chão, esperei que ela falasse todas aquelas coisas que eu nem entendia mais, e saí. Segui por um bom tempo guardando as lágrimas e fragmentando minha identidade negra. Essa experiência deixou marcas profundas, calou-me a boca. Não consegui mais falar sobre qualquer tema ligado a afrodescendência, fugia, me esgueirava; o nó na garganta estava forte e bem atado. Isso durante muitos anos de minha vida. Coloquei-me cega para questões raciais, cheguei a sofrer calada muitas discriminações.

A vida seguiu, até que outro fato aconteceu em 2003, no Centro de Teatro do Oprimido do Rio de janeiro (CTO), instituição de pesquisa e difusão da metodologia criada por Augusto Boal. Eu não estava lá de visita, era Curinga do CTO, especialista do método que trabalhava diretamente com o seu criador. Neste espaço recebemos muitos estrangeiros, de diversos países. Um belo dia adentra a sala um grupo de americanos, uma das mulheres que lá estava e falava português me perguntou: posso falar com um Curinga? (olhando em torno para ver se via mais alguém). Respondi: sim, vamos sentar na sala de reunião. O grupo entrou, eu sentei, ela olhando para mim perguntou novamente: cadê o curinga? Ele ou ela já vem. Eu disse: muito prazer. Sou Cláudia Simone, Curinga do CTO. Ela respondeu espantada: nossa! Desculpe-me, pensei que você fosse a mulher da faxina”! Respondi: é, você se enganou. Naquele momento tudo veio à tona, não falava mais com aquela mulher, mas revia a mulher do movimento negro. O sangue ferveu-me nas veias, as palavras brotaram na boca e o nó em fim se rompeu. Não podia, não devia e não queria mais me calar diante de preconceitos e discriminação racial. Tinha que fazer algo através do Teatro do Oprimido, mas não sabia ainda o que. E as chibatadas não paravam.

Estudante da UNIRIO, universidade do Rio de janeiro, um dia em discussão em sala de aula sobre vagas na cadeiras oferecidas, uma jovem branca, de cabelos lisos, vira para mim e diz em alto e bom som: “ pessoas como você, não deveriam perder seu tempo com universidade, muito menos de Teatro, tirando a vaga dos outros. A gente sabe que vocês tem que trabalhar muito para viver e não conseguem terminar a faculdade. “Por isso, deveriam deixar a vaga para quem é de direito.” (apontava para os outros 30 que estavam na sala, todos brancos de cabelo liso). Nessa situação, esbravejei algumas palavras, umas com sentido, outras coléricas e outras sem sentido, mas nada que respondesse politicamente à ação racista que eu estava vivendo.


Teatro laboratório Anastacia / Fotos: Simone Ricco
 

Ciranda: Então, criar o Laboratório é uma proposta artística para a devida resposta política ao racismo? Quando surgiu a iniciativa de ativar um espaço tão importante para a ação e reflexão dos afro-brasileiros?
CS: Na época em que pensei em fazer algo concreto na luta antirracismos, o positivo é que já conseguia falar, já não me deixava mais atacar sem resposta. Tinha que fazer alguma coisa rapidamente. Estava me sentindo sozinha, fraca, atacada e inferior, então comecei a colecionar textos falando sobre discriminação racial, histórias sobre os grandes ícones negros, a ver todos os filmes possíveis que pudessem me fortalecer para não ser abatida; este movimento fez aflorar o meu pertencimento étnico.

Desde então, partilhei com Alessandro Conceição, Curinga do CTO, meu amigo e companheiro de trabalho, a ideia de um espaço artístico para reflexão das questões afrodescendentes. Havia aí um início de Anastácia. Seguia fazendo projetos que combatem a opressão com arte, mas não uma proposta direta para afrodescendentes. Em 2010 fui convidada a fazer um laboratório chamado Madalena, por Barbara Santos e Alessandra Vannucci. Essa experiência me levou ao encontro de minhas raízes, de minha ancestralidade, de minhas opressões e meus desejos futuros. Aqui surgiu Anastácia.

Ciranda: Já sabemos como surgiu o Laboratório, fale agora a estratégia de ação deste espaço que se mostra engajado com a matriz negro-africana a partir do nome Anastácia.
CS: O laboratório Anastácia pretende ser um espaço para afrodescendentes que através do Teatro Oprimido querem percorrer um caminho de investigação e pesquisa, para refletir sobre o mito da democracia racial brasileira considerando a invisibilidade da população afrodescendente nos espaços socialmente valorizados. A partir de meios estéticos, visibilizar o não reconhecido, dar volume ao não dito, expressar o silenciado, e assim, buscar meios concretos de superar limitações e promover igualdade de oportunidades, refletindo profundamente as questões sócio-políticas ligadas à experiência da população negra dentro e fora do Brasil.

Ciranda: Caracterizada pelo racismo cordial, como a sociedade brasileira recebe o trabalho do Laboratório Anastácia e de atores afrodescendentes posicionados politicamente no combate ao racismo?
CS: Mesmo depois da ideia concebida, dos primeiros passos dados, as situações discriminatórias continuam. Fui chamada para dar uma oficina na UNIRIO. A minha felicidade foi tamanha, voltar na universidade não mais como aluna, mas como especialista. Estava ministrando a oficina e pude reparar que havia uma pessoa que sempre retrucava tudo que eu dizia, era áspera nas respostas, questionando sempre meu lugar de autoridade naquele momento. No final da oficina, fiz uma avaliação como de costume. Essa pessoa resolveu me ELOGIAR. Seu elogio foi assim: “é muito bom estamos em um espaço público da universidade que busca socializar o conhecimento sobre nosso querido e amado mestre do Teatro Augusto Boal. É melhor ainda quando duas alunas, futuras mestras procuram parcerias fora da universidade que enriquece o trabalho, melhor sou ter uma MACACA velha, no caso eu, como alguém que pode compartilhar o seu conhecimento com a gente.”

Dessa vez não esbravejei, não disse palavras sem sentido, respirei fundo, esperei a palavra rodar na boca das pessoas, algumas reproduzindo o termo MACACA velha. Com toda paciência revolucionaria, desfiei todos os títulos que tenho, reforcei o meu lugar de especialista, denunciei em alto e bom som o Racismo sonorizado em cada palavra dita e afirmei que no meu caso, nem de brincadeira quero ser chamada de macaca, nem como elogio, que racismo é crime inafiançável e que não vou hesitar em denunciar. Aqui falou Anastácia.

Ciranda
: O que vale ressaltar da experiência vivida durante as oficinas e apresentações de trabalho realizadas por participantes do Laboratório Anastácia? Como atores e público lidam com essas questões etnicorraciais negadas por tanto tempo na vida social brasileira?
CS: Essas experiências trouxeram muitas inquietações e questionamentos para as atrizes e atores sobre a identidade afro-brasileira, seu lugar na sociedade, anseios por superar e combater a desigualdade racial aumentou a necessidade de um enfrentamento aberto e de forma estética do racismo em suas diferentes manifestações.

O público ainda estranha as expressões estéticas e identitárias dos negros, observa de forma curiosa e reservada a encenação de conflitos raciais, questiona e contra argumenta sobre os dilemas referentes ao processo de construção da identidade negra. Podemos observar um pouco mais o impacto desse diálogo durante a apresentação do nosso primeiro espetáculo de Teatro – Fórum “A Cor do Brasil”, onde abordamos a Ancestralidade e formação da consciência Negra brasileira, investigamos as contradições entre o orgulho da mestiçagem brasileira, que traz na pele a cor e os traços dos povos que formaram a nação, e a ilusão histórica do branqueamento.

Neste espetáculo de Bárbara Santos, dirigido por mim, encenado a partir das técnicas do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal, o público é convidado a intervir na ação dramática para encontrar alternativas concretas para as questões levantadas pelas personagens. Mais uma produção artística e inovadora do Centro de Teatro do Oprimido em cooperação com Kuringa-Berlim.

Ciranda:
Em ano de Rio + 20 e tantas discussões em torno da sustentabilidade dos povos, o que os profissionais do teatro carioca levariam para a pauta da Conferência?
CS:
a é para mim uma pergunta bem difícil de responder. A Rio + 20 se propõe a denunciar as causas da crise socioambiental, apresentar soluções práticas e fortalecer movimentos sociais do Brasil e do mundo, dentre outras questões. Enquanto classe artística, e pensando na “sustentabilidade” de nossas atividades, creio que seria urgente e necessário rediscutir aspectos que criam os monopólios nos meios de produção artística, especialmente, repensar os modelos de editais para financiamentos de projetos, ocupação de teatros, circulação de espetáculos, oficinas artísticas e de formação de profissional.

Considerando que a Conferência está implicada com denúncias de acontecimentos que afetam a sociedade, seria interessante discutir aspectos que afetam a Cultura, tão importante para a sociedade, como por exemplo, a continuidade, manutenção e ampliação dos Pontos de Cultura dentro e fora do país. Enfim, aponto temas não aprofundados, que servem como sugestão para que a Conferência seja um local de busca de soluções práticas para fortalecer projetos culturais que beneficiam segmentos menos favorecidos da população e manifestações artísticas pouco valorizadas pela indústria cultural.

Ciranda: Encerre nosso papo fazendo circular na Ciranda Afro os projetos previstos para 2012, no CTO, no Laboratório Anastácia e em outras frentes teatrais criadas para combater a opressão com arte.
CS: São muitas atividades propostas. Todas podem ser acessadas na página do Centro de Teatro do Oprimido (www.ctorio.org.br). Para fortalecer as trocas com o Laboratório via rede social, criamos a página https://www.facebook.com/#!/LaboratorioAnastacia.

Destaco a proposta do Laboratório Anastácia de realizar , em 2012, apresentações do espetáculo Cor do Brasil. Estamos abertos a convites para mostrar esta montagem em que Creuza, Antônio, Sebastião e Benedito protagonizam a realidade de brasileiros que buscam entender sua identidade a partir da condição de afrodescendentes e encontrar alternativas para superação das limitações impostas por esta condição.

Além disso, convido todos e todas para o Laboratório Anastácia que acontecerá em julho de 2012 (CTO e Kuringa Berlim) e atenderá aos que desejam percorrer um caminho de investigação e pesquisa, tornando-se multiplicadores do teatro do oprimido, utilizando suas técnicas para refletir sobre o mito da democracia racial brasileira e para combater a histórica invisibilidade da população afrodescendente nos espaços socialmente valorizados.

Fonte: Caros Amigos, publicado originalmente em Ciranda