Paulo Kliass: Superávit Primário e Financeirização

A preocupação com o equilíbrio fiscal vem de longa data na implementação dos instrumentos de política econômica. Os modelos pressupunham a recomendação de que as despesas públicas não superassem o montante das receitas.

Por Paulo Kliass*

Como a principal fonte de recursos do Estado consistia na arrecadação de tributos, qualquer elevação das despesas ao longo do exercício acabava por gerar uma contrapartida via emissão de moeda ou por meio do aumento da dívida pública.

Em uma primeira fase, a questão de se evitar um descompasso entre o total das receitas e o das despesas do orçamento público estava focada nos aspectos de política monetária. Ou seja, era necessário impedir que houvesse riscos de surgimento de pressões inflacionárias, em função de uma interpretação de que a inflação era basicamente um fenômeno derivado do excesso de demanda na economia. Assim, de acordo com essa visão, a emissão monetária poderia provocar a elevação generalizada de preços e o conseqüente risco de desequilíbrio macroeconômico.

Porém, a evolução histórica do capitalismo terminou por provocar profundas alterações também no âmbito das próprias finanças públicas. Uma das mudanças mais importantes refere-se ao fato de que começam a ganhar relevância os elementos da esfera financeira em relação aos demais espaços da atividade produtiva “stricto sensu”. Esse processo de autonomização de uma parte das transações econômicas em relação ao setor real passa a ser conhecido como “financeirização”.

Com isso pretende-se caracterizar não apenas a tendência permanente de uma maior simbiose e interdependência entre o sistema bancário e os sistemas industrial, comercial e de serviços. Na verdade, trata-se de um crescimento absolutamente desproporcional da dimensão financeira em relação às demais.

E isso se expressa pela ampliação do espaço dos bancos comerciais, das seguradoras, dos bancos de investimento, das instituições hipotecárias, dos fundos de pensão, das bolsas de valores tradicionais, das bolsas de mercadorias, dos mercados de futuro, das empresas de comércio exterior, das empresas operadoras de cartões de crédito, entre tantos outros exemplos. Assim, a tendência inerente ao sistema capitalista, de ampliar o universo de geração de lucro e acumulação, encontra um novo espaço infinito para sua realização. A condição básica para tanto é a transformação dessas possibilidades de ganho em mercadoria, o chamado processo de “mercantilização” de forma ampliada e generalizada.

Tal diversificação dos instrumentos do mercado financeiro termina por oferecer inúmeras alternativas de aplicação e reprodução do capital em escala global. Um dos nichos é o imenso mercado de operação com os títulos das dívidas públicas. Dessa forma, a partir do momento em que tais papéis passam a ganhar relevância no total das operações financeiras, observa-se uma tendência à sofisticação e à profissionalização em seu universo negocial. As regras do mercado exigem uma redução das incertezas e uma busca de uniformização de procedimentos. Para tanto foi essencial a contribuição oferecida pelos organismos multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, em suas exigências impostas aos países e seus governos.

Com isso, a própria maneira de analisar as finanças públicas passa por uma espécie de aperfeiçoamento. A partir de então, não basta mais apenas uma preocupação com o equilíbrio fiscal tradicional, como o mencionado no início. Uma vez que os instrumentos de endividamento dos Estados por todos os continentes passam a ser objeto de um verdadeiro mercado capitalista, as condições de cumprimento das cláusulas previstas nos títulos públicos devem ser asseguradas em sua plenitude. Não é mais suficiente o mero compromisso dos governos em promover o equilíbrio fiscal, uma garantia de que as despesas não serão superiores ao total das receitas.

Assim, a partir da década de 1990, generaliza-se mundo afora a utilização de um novo conceito para analisar e implementar a política fiscal. A antiga igualdade entre arrecadação de tributos e gastos orçamentários é substituída pela novidade aparentemente mais sofisticada: o “superávit primário”. Na verdade, um suposto esforço intelectual que visa apenas conferir um tratamento prioritário aos operadores no mercado financeiro dos títulos emitidos pelos tesouros dos países.

Um dos aspectos mais relevantes do conceito de “superávit primário” é que ele divide as despesas públicas em dois grandes blocos – tudo isso, evidentemente, sem dizê-lo com todas as letras. De um lado, as despesas ordinárias, tradicionais, as chamadas típicas de Estado. De outro lado – e aqui reside o pulo do gato – ficam as despesas financeiras, relativas ao pagamento de juros e serviços da dívida pública.

O governo se vê obrigado a promover políticas fiscais com o intuito de gerar um excedente na equação (receitas – despesas). Mas o detalhe é que todo o superávit obtido é dirigido para pagar seus compromissos financeiros. Assim, os cortes nas despesas serão sempre nas rubricas de suas funções governamentais de impacto para a grande maioria dos cidadãos, como saúde, educação, previdência, infra-estrutura, etc.

E sempre que os planos de contenção fiscal são anunciados, o discurso oficial recorre aos instrumentos da retórica para argumentar que os cortes na área social são necessários pois não haveria recursos disponíveis. Isso quando há uma destinação de valores do seu próprio orçamento assegurados para o pagamento dos compromissos financeiros da dívida pública.

Portanto, a generalização da aplicação do conceito do superávit primário dá-se como uma exigência do próprio processo de financeirização da economia capitalista. Essa tentativa de assegurar os ganhos privados nas operações dos mercados de títulos públicos termina por provocar, na outra ponta, uma redução da qualidade e da quantidade dos serviços públicos para a absoluta maioria da população do planeta.

*Paulo Kliass é doutor em economia pela Universidade de Paris 10 (Nanterre) e colaborador do Portal Vermelho