Roberto Amaral: O Estado-nação e o dragão financeiro

À imprensa ligeira e aos economistas midiáticos passa despercebida a guinada da política brasileira, restabelecendo o papel do Estado como indutor do desenvolvimento, responsável mesmo pelo fortalecimento da economia privada e, em muitos casos, pela sobrevivência da empresa nacional. Assim foi entre nas décadas de 1930 e 1970, as dos melhores índices do crescimento do PIB brasileiro.

Por Roberto Amaral*

Não há um só setor da economia nacional que não tenha dependido do crédito ou da proteção estatal, seja mediante investimentos em infraestrutura, seja mediante a proteção ao similar nacional (mesmo no caso das montadoras e de toda a indústria multinacional), seja mediante políticas de favorecimento das compras internas, seja, finalmente, mediante as mais diversas formas de protecionismo.

Aliás, a questão do protecionismo tem de ser bem entendida: interessa ele a todos que aqui produzem, fazendo com que, em seu proveito, as multinacionais se comportem como se nacionais fossem. É assim desde sempre: quem está do lado de fora quer abrir as portas do mercado, quem está do lado de dentro quer protegê-lo. Tudo isso foi posto de lado nos largos anos do império do neoliberalismo arcaico que nos infelicitou nas últimas décadas. Neoliberalismo derrotado pela história aqui e em todo o mundo, mas que tenta sobreviver, ideologicamente, na contra-mão da realidade objetiva. Basta atentarmos à grande imprensa.

A retomada dessa política de defesa da economia – que nos salvou da crise mundial e que nos abre espaços para o crescimento sustentado – deve-se ao fato de os dois Fernandos não haverem conseguido desmantelar, de todo, o aparato estatal de intervenção. Primeiro, o clamor público contra as tratativas de privatização de Furnas e da Petrobras (após a doação da Vale a grupos privados), depois as derrotas dos candidatos neoliberais, o que impediu a completa privatização dos bancos estatais. Até o BNDES esteve na mira dos privatistas. Sobraram, além dele, os poderosos Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, acionados pelo governo Lula para garantir o consumo interno quando, logo em seu início, a crise do capitalismo internacional lançava suas garras sobre nós, ameaçando uma estabilidade econômica e um crescimento recuperados, com grandes sacrifícios, após mais de duas ‘décadas perdidas’, aquelas décadas governadas pelo neoliberalismo caboclo.

A intervenção dos bancos estatais, resolutiva em si, seria necessária em qualquer hipótese de consolidação de uma política de expansão do mercado interno (a estratégia do governo de centro-esquerda), mas foi tornada inadiável quando o sistema bancário nacional (isto é, o sistema bancário aqui instalado, algumas instituições repercutindo aqui dentro as crises de suas matrizes estrangeiras), pensando pura e exclusivamente nos interesses de seus acionistas, de costas para os interesses do país onde colhiam e colhem seus melhores lucros, contiveram o crédito e assim apontaram claramente para a estagnação e a recessão. Delas nos livrou a ação do governo Lula que determinou ao BNDES, à Caixa e ao Banco do Brasil (onde a resistência foi de tal ordem que exigiu a demissão de seu presidente) a presença ativa no mercado, oferecendo financiamento de investimentos e crédito ao consumidor, mantendo ativa a cadeia industrial, salvando empregos e alimentando o mercado interno. Assim o círculo vicioso do monetarismo (recessão, desemprego, queda das vendas, queda da produção, desemprego) foi substituído pelo círculo virtuoso do desenvolvimento: mais compras, mais produção, mais empregos, mais compras.

O segundo grande momento devemos à presidente Dilma, que, de fato, sepultou a tolice de “Banco Central independente”. Independente de quem, cara pálida? De um governo soberano, respaldado pelo sufrágio eleitoral, que se veria impedido de operar sua política econômica diante de meia dúzia de diretores provindos de bancos privados ou fazendo carreira para neles ingressarem? A independência que se pretende para o BC é a de não se submeter aos ditames do sistema bancário privado. Isto sim.

O fato ao qual me refiro é a nova política de juros, determinada pelo governo Dilma, de baixa constante (a ser confirmada na próxima reunião do Copom), ainda que lenta, sem medo do “mercado”, com os olhos voltados para o desenvolvimento sustentado. É importante lembrar que quando o Banco Central começou a reduzir a taxa básica de juros, a grande imprensa e o “mercado” apressaram-se a prognosticar a volta da inflação. E o que aconteceu? Ela caiu!

Agora, por ordem da Presidente Dilma, diante da insistência do sistema bancário privado em manter os juros estratosféricos que está habituado a praticar, Banco do Brasil e Caixa Econômica baixaram unilateralmente seus juros e impuseram a concorrência num mercado fechado, cheio de caixas-pretas e cujos interesses se fazem presentes nos mais diversos escaninhos da Esplanada.

Como reagem os banqueiros? Esperneando, chantageando, pedindo mais recursos e mais garantias e, como sempre, menos impostos e mais liberdade para suas altíssimas taxas por serviços discutíveis. E dizem que o spread é resultado da inadimplência. Ora, a inadimplência é que o resultado dos juros de agiota de esquina, que praticam.

Como toda gente sabe, até os economistas midiáticos, os bancos no Brasil têm a maior rentabilidade do planeta! Com um ganho médio (retorno sobre o patrimônio liquido) de cerca de 14%, superaram o lucro dos bancos estadunidenses, instituições bem maiores, que não foi além, em 2011, dos 7,63%.

No ano passado, o lucro dos sete maiores bancos brasileiros (R$ 49,4 bilhões)
representou/apresentou um crescimento de 14% sobre o lucro em 2010. Isto significa 39,4% do total acumulado por 344 empresas de capital aberto (não incluídas Petrobras e Vale). O PIB brasileiro, no mesmo período, cresceu 2,7% e a indústria de transformação, apenas 0,2%.

Apesar de auferir lucros que raiam a obscenidade, os bancos não liberam crédito e captam no mercado pagando juros de 7,5% para emprestar a 80% ao ano, aí embutido o maior spread do mundo!

Amuados, dizem quase em uníssono (com uma ou outra exceção, como a do HSBC) que não vão aderir à política de juros honestos. Até quando poderão se impor aos interesses nacionais?
A imprensa apressada e a direita impressa tampouco gostaram da nova política do governo. Imediatamente após o anúncio das medidas, grandes jornais iniciaram uma série de reportagens para dizer que os bancos públicos não estão preparados para dar sequência às medidas anunciadas pelo Planalto, e jornalistas anunciam a queda das ações do Banco do Brasil, assustando o investidor e o “mercado” sob o frívolo argumento segundo o qual a redução dos juros implicará queda de rentabilidade (prejuízo para os acionistas), quando até os contínuos das redações sabem que emprestando mais e conquistando novos correntistas os bancos ganharão mais. Em três dias de operação, o BB teve 29 mil adesões às novas linhas de crédito.

Esta, aliás, é a questão central: o fortalecimento do setor bancário estatal como exigência estratégica de defesa da economia nacional e de capacidade objetiva de execução das políticas públicas. Sua presença agressiva no mercado, forçando a competição, é o que de mais salutar ocorreu este ano, na economia. Lembre-se, finalmente, que o festejado desempenho, nos últimos anos, inclusive durante a crise, de duas grandes economias do mundo, a China e a Índia, deve-se em boa parte, não resta dúvida, ao fato de ambas se beneficiarem de um poderoso sistema de bancos públicos, imbuídos de missão estratégica. É preciso, entretanto, que não seja este um episódio isolado ou de curto prazo. Impõe-se completar a desindexação da economia, para que a inflação seja definitivamente domada.

Enquanto isso, a imprensa corporativa, tão solícita em dar voz aos queixumes do “mercado” relativos aos ensaios de política industrial, pouco ventila os acontecimentos que vêm sacudindo um certo país nórdico, chamado Islândia. Aos tolos, e só a eles, isso parecerá uma pura coincidência.

*Escritor, vice-presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB)