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Moacyr Oliveira Filho: Cilon não foi enterrado. Foi semeado

Acabei de ler o livro Antes do Passado – o silêncio que vem do Araguaia, da jornalista e publicitária Liniane Haag Brum. Li de uma enfiada só, de cabo a rabo, da primeira à última página, aproveitando a monotonia de um sábado de folga.

Por Moacyr Oliveira Filho*

O livro de Liniane foi um presente que me caiu no colo.

Na semana passada, meio que por acaso, trombei com Liniane no Facebook, ao receber um pedido para adicioná-la. Me chamou a atenção o sobrenome Brum e a adicionei.

Liniane é sobrinha e afilhada de Cilon Cunha Brum, o Comprido, um dos mortos e desaparecidos na Guerrilha do Araguaia.

Cilon foi meu companheiro de PCdoB, antes de partir para o Araguaia. Mais do que isso, foi ele quem formalizou meu ingresso no PCdoB, no final de 1970, quando eu e outros companheiros secundaristas entramos na USP e decidimos passar da AP para o PCdoB. Me lembro como se fosse hoje do nosso primeiro "ponto" na porta do Cine Belas Artes, na esquina da Rua da Consolação com a Avenida Paulista. A partir daí passei a ter "pontos" semanais com Cilon, quase sempre no mesmo lugar. Nossa convivência durou alguns meses, quase um ano. E, apesar de ser uma convivência estritamente política, sempre tive um grande carinho pelo Comprido.

Pouco ou quase nada sabia da sua vida pessoal, como exigiam as rígidas regras de segurança da época. Apenas sabia que ele era estudante de Economia da PUC, gaúcho e se chamava Cilon, embora o tratasse sempre pelo codinome: Comprido.

Os pontos semanais com Comprido, religiosamente cumpridos, eram sempre muito prazerosos. Comprido era cativante. Alto, magro, cabelos pretos, lisos, repartidos ao meio, Comprido era sereno, tranquilo, camarada. Nossas conversas se limitavam à pauta política: análise de conjuntura, situação do Movimento Estudantil, tarefas da nossa Organização de Base, discussões políticas e debates teóricos. Mas sempre eram conversas saborosas, produtivas, cheias de ardor revolucionário. Comprido era o nosso orientador político. Nosso único contato com a estrutura partidária. Era ele que nos fazia sentir militantes do PCdoB.

Um belo dia, num desses "pontos" semanais, em meados de 1971, Comprido se despediu e anunciou que iria ser deslocado para outra tarefa partidária e que a partir da outra semana nosso contato seria feito com outra pessoa, a camarada Amélia, que nunca mais vi e até hoje não sei quem é. Marcamos o dia do "ponto", no mesmo local, acertamos a senha – afinal não conhecia Amélia e nos despedimos com um forte abraço.

Naquela época ainda não sabíamos da existência do Araguaia, nem que Comprido tinha sido deslocado para lá.

E nunca mais vi o Comprido

Ou melhor, vi sim. Por fotografia. Um ano depois, em maio de 1972, fui preso junto com outros companheiros de nossa base universitária pelo DOI-Codi do II Exército. Lá, durante os interrogatórios, os torturadores me apresentaram uma foto de Comprido e queriam saber se eu o conhecia. Admiti tê-lo conhecido, mas que não tinha mais contato com ele há mais de um ano. Foi o bastante para que as torturas recrudescessem. Apanhei uns três dias até que os torturadores se convencessem de que eu estava falando a verdade. Não via Comprido há mais de um ano e não fazia a menor ideia de onde ele poderia estar.

Anos depois, quando as primeiras notícias sobre a Guerrilha do Araguaia vieram à tona, soube que Cilon Cunha Brum era um dos mortos e desaparecidos na Guerrilha.

Sempre tive curiosidade em saber mais sobre Cilon, mas as informações sempre eram escassas, limitadas ao seu nome, foto e uma breve biografia publicadas nos livros e materiais que o PCdoB passou a publicar sobre a Guerrilha.

Dos quase 70 mortos no Araguaia, conheci três. Cilon, Helenira e Ribas. Com Helenira e Ribas nunca tive contato pessoal, apenas os encontrava esporadicamente, entre 1968 e 1969, em reuniões, assembleias e passeatas do Movimento Secundarista. Eles eram dirigentes da UBES. Mas com Cilon era diferente. Cilon era, pra mim, uma pessoa de carne e osso, com quem convivi de perto por quase um ano. Cilon era como se eu estivesse estado no Araguaia.

Conto isso para explicar porque o livro de Liniane me emocionou tanto.

Ao ler seu relato, parece que o tempo voltou e Cilon estava o tempo todo ao meu lado. O livro é ótimo e traz uma leitura diferente sobre o Araguaia. Não é uma reportagem, muito menos uma análise política ou ideológica da Guerrilha. É um singelo, emocionado e pungente depoimento pessoal de um familiar em busca de notícias e informações sobre a passagem de seu parente pelas matas do Sul do Pará.

É um relato pessoal que faltava na bibliografia sobre o Araguaia e mostra com crueza o sofrimento das famílias desses heróis do povo brasileiro que esperam até hoje os corpos de seus entes queridos para enterrá-los em paz.

O livro de Liniane tem vida, tem amor, tem emoção.

E comprova a necessidade urgente de se esclarecer definitivamente essa página da história do Brasil.

O livro de Liniane é um libelo cortante da luta dos familiares dos mortos e desaparecidos e uma prova de que nada justifica o silêncio do Estado e das Forças Armadas sobre a verdade dos anos de chumbo.

Uma frase do livro não me sai da cabeça e sintetiza tudo que senti na sua leitura: "Seu filho Cilon não foi enterrado. Foi semeado. Deixado em cima da terra como grão que um dia vai germinar", escreve Liniane numa de suas cartas à avó, informando-a sobre as notícias da busca por Cilon, que recheiam o livro e são um dos pontos fortes e emocionantes da obra. Nessa última carta, Liniane informa a avó ter descoberto que Cilon foi executado na mata, meses depois de ter sido preso pelo Exército, e seu corpo foi deixado na mata, insepulto, coberto apenas com alguns ramos de vegetação.

Liniane tem razão. Cilon foi semeado e a semente que germinou do seu corpo é a semente da liberdade!

*Moacyr Oliveira Filho é jornalista desde 1975.