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Katarina Peixoto: Aborto não é um prazer e deve ser um direito

A luta pela positivação do direito da interrupção de gravidez indesejada, enquanto indesejada, é requisito inegociável não só da luta das mulheres, mas do estado de direito moderno, que sobrepujou a tralha jusnaturalista da constituição moderna do conceito de Estado de Direito.

Por Katarina Peixoto, na Carta Maior

Não conheço uma mulher que tenha abortado e que tenha saído saltitante ou mesmo tranquila depois de consumado o ato. E mesmo mulheres que, como eu, são no mínimo agnósticas. Abortar é doloroso, é incapacitante em alguma medida um tanto indizível, adoece a alma, machuca, interdita coisas. Aborto não é motivo de alegria para ninguém.

As razões por que um aborto dói variam e não importa exatamente quais. Não interessa: pode ser que alguma mulher se sinta aliviada ou que não se deprima depois de um procedimento de interrupção de gravidez e não há razão que autorize a acusação de imoralidade sobre essa pessoa, menos ainda de delinquência.

Evitar o sofrimento nem sempre implica não sofrer. Aliás, quase nunca, ensina a experiência. Evitar mais sofrimento pode implicar menos sofrimento. Esta talvez seja uma alternativa decente e no caso do aborto parece ser uma alternativa compromissada com a vida.

A mulher tem essa prerrogativa historicamente bizarra de ter o seu corpo e o seu prazer sexual invadidos pelos dispositivos morais que parasitam as sociedades adoecidas de religião. Dispositivos morais religiosos, como aprendemos nas escolas, não são necessariamente dispositivos éticos. Entre o costume e a decência a regra é a distância, não a proximidade.

No caso do aborto a regra tem sido a indecência, a indignidade e a covardia. Os números são escabrosos de mulheres mortas por falta de reconhecimento de um direito elementar, de uma prerrogativa da igualdade de direitos.

Não é demais, infelizmente, lembrar que somente mulheres muito pobres morrem por conta de aborto. E que médicos enriquecem no mercado ilícito de abortos limpinhos, em que cometem as suas obrigações naturais sobre as quais não pode haver imputação penal ou civil, em caso de erro médico, por exemplo.

A Política brasileira parece que amadurece quando as forças das trevas se manifestam com liberdade. Por mais paradoxal que isso soe, o que se passa parece mais com um avanço do que com uma ameaça ou com um retrocesso.

O espanto que pastores evangélicos ou que um bispo revisionista do holocausto podem causar hoje na sociedade é muito bem vindo. Um pastor ministro causar rebuliço nas bases que apoiam o governo federal é uma coisa que tem um lado luminoso, obviamente que na oposição a tal gesto infeliz.

Durante os anos de resistência à ditadura e de reconstrução da democracia brasileira, as agendas dos direitos civis e das liberdades políticas eram prerrogativas de guetos. Quem defendia o meio ambiente, os gays, as mulheres, as crianças e a laicidade do estado republicano eram setores em regra ligados às esquerdas partidárias, não só do PT, mas do PMDB, do PSDB, do PSB e etc. A grande agenda era o controle inflacionário, a distribuição de renda, o crescimento econômico, a dívida externa, o desenvolvimento, a fome, a miséria, a destruição da esfera pública estatal, a privatização, a não privatização, a industrialização, a desindustrialização. E a pequena grande agenda de ocasião midiática era e segue sendo a corrupção, mas ela, como se sabe, é sempre ou quase sempre cortina de fumaça, vide o molequinho, o jornalista e o editor organizados com o contraventor lá de Goiânia.

O mundo dos direitos civis e das liberdades políticas parecia um tanto distante da "vida real" brasileira e hoje, passadas décadas de refazimento do quadro democrático institucional do país, finalmente demos um passo adiante.

Ao contrário do que apressadamente se pode perceber, Malafaias e Crivellas emergiram como exceções e diferenças frente aos avanços democráticos. E por isso, e unicamente por isso eles se tornaram publicamente repugnantes. Porque a existência desses lixões religiosos sempre parasitou a vida simbólica e cultural do Brasil. Este é um país católico e protestante, evangélico, místico, desde sempre.

Quando é que a República se tornou um valor reivindicado com tamanha clareza e ira? Hoje, não por acaso quando o fim da miséria e da fome endêmica e a estabilidade democrática se tornaram possibilidades reais no horizonte.

Defender o casamento gay no Brasil, hoje, não é mais uma idiossincrasia dos malucos da Quarta Internacional, mas uma agenda defendida por quem tem tico e teco em bom estado mental e moral. E isso é bom. É motivo de reflexão e de reconhecimento do quanto avançamos nos requisitos materiais e políticos do exercício pleno da democracia. Não estou dizendo com isso que é bom ter religiosos na base do governo nem mesmo que é razoável ter religiosos num partido de esquerda. Mas o meu jacobinismo sem guilhotina é decerto muitíssimo menos relevante que o estado das coisas no país, hoje, e sobretudo, do que o direito das mulheres interromperem gravidez indesejada.

Defender a abertura dos arquivos da ditadura militar brasileira, a resistência a Belo Monte e defender o escárnio e a desmoralização dos parasitas religiosos da Política virou um lugar comum de quem sabe e sobretudo de quem vive o estado de direito no cotidiano. Não se trata mais de uma coisa de hippies, de militantes profissionais partidários e nem de estudantes de graduação de direito bem formados na tradição republicana e, vai de si, antijusnaturalista.

Defender o direito da mulher à interrupção de gravidez indesejada anda de par com o horror trivial que sentimos frente à isenção tributária de instituições religiosas, e à repulsa que Malafaias e Dom Dadeus Grings causam em nossos fígados. Essa gente não tem mais lugar de direito "natural", misturados, indiferentes, entre quem se julga democrático e leva a sério as próprias crenças.

Para quem é capaz de ler um livrinho por ano, a defesa desse direito das mulheres e da sociedade se tornou intuitiva. E isso é muito bom.

Também não é estranho que o STF esteja ainda às voltas com o debate sobre a legitimidade da interrupção de gravidez em caso de anencefalia, embora seja em si mesmo algo lamentável, pelo atraso e pela insuficiência da demanda. O Judiciário é e em certa medida deve ser um poder retardatário. O direito vem depois da história e na melhor das hipóteses, que é aquela legada pelo positivismo jurídico, ele vem junto com a história e pode, então, fazer história no sentido esclarecido, isto é, racional, da palavra.

O que se tornou estranho e inaceitável é a acusação de indecência, de imoralidade e de crime sobre nós, mulheres, que já abortamos ou que podemos vir a abortar. Tornou-se estranho mesmo, muito mais estranho e indecente do que o era há dez ou quinze ou vinte anos atrás. Não nos esqueçamos que a esquerda brasileira sempre foi predominantemente católica, para a sua desgraça.

O jusnaturalismo que saiu do armário militantemente desde as últimas eleições presidenciais é a maior ameaça ao processo democrático em curso no país. O jusnaturalismo é irmão do fascismo e inimigo da democracia. Por isso, também, a luta pela positivação do direito da interrupção de gravidez indesejada, enquanto indesejada, é requisito inegociável não só da luta das mulheres, mas do estado de direito moderno, que sobrepujou a tralha religiosa da constituição moderna do conceito de Estado de direito.

À Fé o que lhe é de direito, e ao Direito o que lhe é de Direito, cada um na sua, como deve ser, segundo a Constituição Brasileira. Nenhuma mulher deve respeitar juridicamente o que um padre, um pastor ou pai de santo lhe recomenda nos seus templos. Quem leu Tomás de Aquino e entendeu alguma coisa pode saber disso.

Aborto não é prazer, nem é pecado. Aborto deve ser um direito, nada menos e nada mais.

Katarina Peixoto é bacharela pela Faculdade de Direito do Recife, Mestre em Filosofia, Doutoranda em Filosofia Moderna, na UFRGS, sub-editora e tradutora da Carta Maior