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O massacre de civis que os EUA não confirmam nem negam

Por algumas semanas no começo do inverno de 2009, um avião observador sobrevoou o povoado de al-Majala, no sul do Iêmen. A aeronave, provavelmente americana, não era vista como ameaça. Afinal, havia 7 anos desde a última ação militar dos EUA no Iêmen, quando um avião não tripulado matou seis militantes ligados à Al-Qaeda.

Por Chris Woods*

Mas era o prenúncio de uma catástrofe para aquele povo. Às 6 da manhã de 18 de dezembro, uma embarcação da marinha americana ancorada no Golfo Pérsico lançou pelo menos um míssil cruzador rumo a al-Majala.

Entre os mortos estavam 22 crianças. A mais nova, Khadje Ali Mokbel Louqye, tinha apenas um ano de idade. Uma dúzia de mulheres também morreu, entre elas, grávidas.

O alvo dos americanos era Saleh Mohammed al-Anbouri, também conhecido como al-Kazemi. Um conhecido militante, que supostamente vinha “trazendo cidadãos de diferentes países para serem treinados e se tornar membros da Al-Qaeda”, como declarado no inquérito posterior. Ele era ligado à Al-Qaeda da Península Arábica (AQAP), uma facção da organização terrorista que realizou ataques contra interesses americanos no Iêmen.

Al Anbouri havia trazido sua mulher e quatroo filhos jovens para viver em sua comunidade em al-Majala. Também viviam no lugar a extensa família al Haydara, na maioria mulheres e crianças. Eles não sabiam da ligação com a AQAP.

Al Anbouri disse aos moradores que, assim que foi solto da prisão, ele queria “começar uma nova vida”. Na manhã de 17 de dezembro, ele e um grupo de outros homens estavam cavando um poço. Então, ao menos um míssil cruzador BGM-109D Tomahawk atingiu al-Majala.

Uma investigação da Anistia Internacional identificou pericialmente os fragmentos, concluindo:

“Este tipo de míssil, lançado de um navio de guerra ou submarino, é projetado para carregar 166 munições de bombas de fragmentação (cluster) que explodem em cerca de 200 fragmentos afiados de aço, podendo causar danos a mais de 150 metros de distância. Substâncias incendiárias dentro da bomba também espalham fragmentos de zircônio incandescente desenvolvido para atear fogo em objetos inflamáveis”.

Algumas horas depois do ataque, começou a circular a notícia de que um grande número de civis havia morrido em al-Majala. O New York Times noticiou naquela noite: “algumas testemunhas e jornalistas locais em Abyan disseram que muitos civis foram mortos”. No dia seguinte, a Al Jazeera transmitiu imagens de corpos encobertos.

Foram mortos 41 civis no ataque americano. Destes, 14 eram do extenso clã al Haydara, junto com 27 membros do clã al Anbouri. Outras três pessoas morreram depois, quando pisaram nas sobras das bombas cluster.

Uma sobrevivente contou ao repórter Jeremy Scahill, da Al Jazeera: “às 6 da manhã eles estavam dormindo, e eu estava fazendo pão. Não sei o que aconteceu com minhas crianças, minha filha, meu marido. Apenas eu sobrevivi, com este idoso e uma de minhas filhas”.

Famílias inteiras foram aniquiladas. Mohammed Nasser Awad Jaljala, 60 anos, sua esposa Nousa, 30 anos, o filho deles Nasser, 6 anos, e filhas Arwa, 4 anos, e Fatima, 2 anos, foram todos mortos. Lá estavam Ali Mohammed Nasser Jaljala, de 35 anos, sua esposa Qubla, de 25 anos, e suas quatro filhas: Afrah (9), Zayda (7), Hoda (5) e Sheikha (4). Todas assassinadas.

O mais jovem a ser morto, Khadje Ali Mokbel Louqye, tinha apenas um ano de idade.

Ahmed Mohammed Nasser Jaljala, de 30 anos, foi morto ao lado de sua mulher Qubla, de 21, e sua mãe Mouhsena de 50 anos. A filha deles, Fátima, de 13 anos, foi a única sobrevivente da família, gravemente ferida e com necessidade de tratamento médico no exterior.

O clã Anbour sofreu perdas catastróficas similares. Abdullah Mokbel Salem Louqye morreu com sua mulher, filho e três filhas. A família de sete pessoas do seu irmão Ali Mokbel Salem Louqye também foi dizimada.

Um líder tribal, Sheik Saleh Ben Fareed, visitou a área logo depois do ataque e descreveu o massacre para o repórter da Al Jazeera: “Se alguém tiver o coração fraco, creio que ele desabará. Você vê cabras e ovelhas por todo lugar. Você vê cabeças daqueles que foram mortos aqui e ali. Você vê crianças. Você não pode distinguir se esta carcaça pertence a animais ou seres humanos. Muito triste, muito triste.”

As mortes representam uma das maiores baixas de civis dentro das operações militares americanas recentes.

Como os EUA estão em guerra secreta no Iêmen, não se sabe se há alguma investigação dessas mortes. O que transparece é que os EUA tentam encobrir seu papel no ataque.

Corpos queimados

O alvo do ataque, o militante Al Anbouri, foi morto naquele dia junto com mais de uma dúzia de supostos militantes. Apenas um foi identificado – Abdulrahman Qaed Al-Zammari. De acordo com relatórios, seis corpos sumiram do local levados por “homens armados não identificados”. Os corpos teriam sido queimados em um lugar desconhecido.

Para a elite do Pentágono, a Joint Special Operations Command (JSOC) – o grupo que capturou Saddam Hussein e matou Osama bin Laden – o primeiro ataque americano no Iêmen em sete anos deve ter sido um sucesso. Um terrorista procurado e seus supostos comparsas estavam mortos.

Três semanas depois do ataque, o general David Petraeus, então chefe do Comando Central dos EUA (Centcom) – e que agora dirige a CIA – encontrou o presidente do Iêmen, Saleh, na capital Sanaa. Alinhado com a natureza escusa da nova frente de Obama na guerra contra o terror, os dois arquitetaram para esconder o papel dos EUA no ataque.

Saleh mostrou-se consternado e “lamentou o uso de mísseis cruzadores ‘não muito precisos’… erros foram cometidos”, ele disse. “Por que tantos civis foram mortos no ataque?”

De acordo com um relatório secreto deste encontro, divulgado posteriormente pelo WikiLeaks, Petraeus foi movido pela preocupação de Saleh. “Os únicos civis mortos foram a esposa e duas crianças de Al Anbouri”, ele disse ao presidente. Um adendo ao telegrama observa que “A conversa de Saleh sobre as baixas de civis sugerem que ele não esteja sendo bem informado por seus assessores”.

No entanto, parece que o próprio Petraeus estava mal informado naquele dia.

A esposa de Al-Anbouri, Amina, morreu. E também seus quatro filhos: Maha, 12; Soumaya, 9; Shafika, 4; e Shafiq de apenas dois anos. Outros 39 também morreram, como se sabe agora.

Inquérito oficial

Dias após o ataque, o parlamento do Iêmen convocou uma comissão de inquérito sobre os incidentes militares na província de Abyan. Formada por 14 representantes, a comissão foi liderado pelo Sheikh Hamir Ben Hussein Al-Ahmar, atualmente vice porta-voz do parlamento iemenita.

A comissão procurou descobrir o que realmente tinha acontecido em al-Majala, viajando ao local para interrogar sobreviventes. Um porta-voz do sheik afirma que o inquérito “não confirmou que forças americanas tenham lançado o ataque”.

Mas a comissão achou provas tenebrosas do massacre. Embora tenha concluído que al Anbouri e 13 outros militantes morreram, suas mortes foram eclipsadas pelas de outros 44 civis. O efeito de um míssil recheado de bombas cluster, de fragmentação, foi particularmente brutal:

“Quando os membros da comissão visitaram o cemitério onde as vítimas estão enterradas, notaram que alguns estavam enterrados em valas comuns porque seus restos não puderam ser identificados. Seus corpos foram completamente despedaçados durante o ataque”.

Dando nomes aos mortos

A comissão publicou – em árabe – toda sua investigação em 7 de fevereiro de 2010. Foram inclusos os nomes, idades, gênero, relação de parentesco e clãs de todos os 44 civis mortos, junto com as declarações de testemunhas sobreviventes.

Um mês depois, o parlamento iemenita aprovou completamente as descobertas da comissão, evocando o governo a abrir uma investigação judicial. De acordo com a Anistia Internacional, “no mesmo dia o governo do Iêmen desculpou-se às famílias das vítimas, descrevendo as mortes como um ‘erro’ durante uma operação que era tinha como alvo militantes da Al-Qaeda, e disse que comissões seriam montadas para providenciar reparos pelas pessoas mortas e propriedades destruídas”.

O Iêmen confirmou ao Bureau que pagou indenizações às famílias afetadas, e que “autoridades americanas não se envolveram no processo sob qualquer forma”.

Há dois anos os EUA estão cientes de todos os 44 civis mortos em al-Majala. Seu papel direto no ataque é claramente documentado e confirmado em telegramas diplomáticos vazados pelo WikiLeaks.

Procurado pelo Bureau, um porta-voz do Departamento de Estado afirmou, em off: “Eu não tenho nenhuma destas informações para vocês a respeito do incidente de 17 de dezembro de 2009 em questão. Eu te encaminho ao Governo do Iêmen para mais informações sobre seus esforços no contraterrorismo”.

O Centcom se negou a discutir assuntos que possam ser relacionados às forças especiais americanas.

O Bureau também perguntou ao comitê de Forças Armadas do Senado Americano quais investigações foram realizadas sobre as ações militares no Iêmen. O comitê respondeu que não está “habilitado para responder estas perguntas”.

*Chris Woods é jornalista do Bureau of Investigative Journalism.

Fonte: APública