Átila Bezerra: Millôr e o riso que fazia pensar

Ao se colocar como uma espécie de ouvidor satírico do Brasil, Millôr fazia da força do traço humorístico uma ferramenta de reflexão na batalha diária no espaço público da mídia.

Millôr Fernandes

 O humor brasileiro moderno nasceu no Méyer. Todas as formas cômicas de vanguarda, a força do humor como arma feroz contra qualquer tipo de opressão política, social e cultural, fosse de direita ou de esquerda, Millôr Fernandes dominou e transformou em riso. Era tão anárquico, que não levava a sério nem o seu anarquismo, e seria capaz de satirizar do general ao punk, dando-lhes chutes nos traseiros com fortes argumentos desenhados.

O que Shakespeare teria feito ao ler as comédias e aforismas de brasilidade anárquica do carioca Millôr, não está no gibi. Mas o guru viria apenas séculos depois, e traria para perto de nós a musicalidade, a profundidade e a universalidade do poeta inglês em traduções. Ele próprio, com suas linguagens plurais, que passavam pelas mais variadas formas de comunicação escrita e visual, se tornaria universal. Paulo Francis dizia que se Millôr escrevesse em inglês, seria um dos maiores humoristas do mundo. E é.

Desde a revista O Cruzeiro, a revista colorida em rotogravura Pif-Paf, o monumental nanico O Pasquim, até espaços que a priori não caberiam um Millôr dentro, como a Veja e o Uol, trouxeram o guru para dentro de suas páginas e sites, ou à frente, como diretor, como no caso dos dois veículos citados da imprensa alternativa. Foi o papa de gerações de cartunistas, que aprenderam a usar a inteligência com o pincel, não se submetendo a nada nem a ninguém, apenas com a cabeça e o talento, que no caso de Millôr eram inesgotáveis.

É possível que a reunião de todos os seus desenhos publicados seja impossível, tamanha a produção em 75 anos de trabalho ininterruptos, tamanho o vigor criativo, tamanha a acumulação de acidez e de indignação com as agruras do ser humano contra o ser humano, esse “ser inviável”, como ele mesmo dizia.

Sua liberdade de criação era tão grande que incomodava todas e quaisquer instituições: Igreja, partidos, “celebridades”, mundo acadêmico, e quaisquer outras que mostrassem nossas inevitáveis contradições de sentido da construção das coisas e dos fatos. Ao se colocar como uma espécie de ouvidor satírico do Brasil, Millôr fazia da força do traço humorístico uma ferramenta de reflexão na batalha diária no espaço público da mídia. Os usos possíveis que fazemos de Millôr, que ele nos fazia fazer, menos são políticos em sentido amplo (e eram também), mas são mais no sentido de uma crítica de nossos maus hábitos arraigados, de nossos vícios seculares, de nossas mesquinharias cotidianas.

Se ser intelectual, coisa que nunca Millôr aceitou e ironizava ser (se dizia O guru do Méyer), é pensar e mudar aos poucos o mundo, Millôr conseguiu ser o guru dos humoristas brasileiros em quase 90 anos de vida. Um livre pensador sacana, que fez as pessoas pensarem também. Rindo disso tudo, claro.

Átila Bezerra é jornalista

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