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O noticiário econômico entre a ideologia e a ignorância

Não sei se se trata de um jogo ideológico ou se é pura ignorância, mas o abuso de terminologia enganosa no noticiário econômico nesse tempo de crise global beira o paroxismo. Quando se trata de comentarista de televisão então chega-se ao clímax. Contudo, mesmo os jornais especializados, que por serem especializados deveriam ser mais rigorosos na matéria, não escapam do alinhamento ao besteirol generalizado. Seguem-se exemplos.

Por J. Carlos de Assis*, em Carta Maior

Quando anunciam mensalmente o superávit primário, os comentaristas da Globo o “explicam” invariavelmente como a poupança feita pelo Governo para pagar os juros da dívida pública. Ora, se o dinheiro é para pagar juros, não pode ser poupança. É uma despesa. Dizer que é poupança dá uma ideia de austeridade no setor público totalmente falsa. Despesa com juros significa esbanjamento de dinheiro de impostos de forma improdutiva, sobretudo quando puxada pela taxa de juros mais alta do mundo.

Quando anuncia mensalmente a taxa oficial de desemprego, praticamente toda a mídia parece ignorar que ela se refere às seis maiores regiões metropolitanas, não à totalidade do país. Assim, ao inferir da taxa oficial de desemprego o número de desempregados nas regiões, a mídia refere-se a este número como se fosse o total dos desempregados brasileiros, não os desempregados das seis regiões metropolitanas. Isso subestima e dá uma ideia falsa do número total efetivo de desempregados no Brasil.

O noticiário de televisão sobre as decisões do Copom tem sido  uma piada. Já foi pior quando o Banco Central estava aumentando a taxa de juros, e era necessário justificá-lo. Nesse caso, o modelo de metas funcionava como um recurso de mistificação para dizer que o aumento dos juros era necessário para combater a inflação, escondendo o propósito verdadeiro de atrair dinheiro estrangeiro para colorir o balanço de pagamentos. Agora que o BC, sabiamente, reduz a taxa de juros, e a inflação estranhamente baixa, os comentaristas não se dão conta de que juros menores são sobretudo uma barreira para a entrada de recursos estrangeiros indesejáveis em face da necessidade de segurar o câmbio.

Estimulada pelo sociólogo corporativo José Pastore, a mídia sistematicamente afirma que os custos sociais representam 100% ou mais da folha salarial no Brasil. Trata-se de uma mistificação. Contabiliza-se como custo social o que não passa de salário indireto: FGTS, férias, décimo terceiro, PIS/Pasep, vales refeição e de transporte, tudo isso é salário indireto. Custo social mesmo é o previdenciário, menos de 30% da folha. Compare-se o total do salário de um trabalhador brasileiro com o de um trabalhador chinês especializado, e certamente já começamos a perder!

A Associação Comercial mantém em São Paulo, num grade painel, o impostômetro. Mede o aumento do imposto que o brasileiro paga por minuto, e sempre que atinge um marca sugestiva a televisão noticia. Sugeri a um dirigente do PT, já que o PT é o principal partido do Governo, que preste um serviço de esclarecimento à população sobre o uso dos recursos públicos colocando ao lado do impostômetro em São Paulo um investômetro público, ou seja, uma medida do que o setor público investe por minuto para atender a clientela do SUS, da Previdência, da Educação, dos transportes, do financiamento ao setor privado pelos bancos oficiais etc, etc.

Não quero com isso justificar a carga tributária brasileira, sobretudo o imposto sobre pessoa física da classe média e baixa (está indecentemente elevada por causa do baixo patamar de rendimento sobre o qual recai o imposto de renda), mas quando se trata da carga total ainda estamos longe do que é necessário para construirmos um verdadeiro estado de bem estar social.

O setor público nos três níveis representa 35% no Brasil, enquanto chega a 66% na França e a 56% na Alemanha. Alguns comentaristas da direita, quando se referem à carga tributária, indiretamente admitem que é baixa, mas logo acrescentam que é alta se comparada aos serviços prestados pelo Estado. Perguntem a eles se topam elevar a carga, sobretudo criando novas alíquotas marginais do IR para aliviar as de baixo, a fim de melhorar os serviços públicos?

O programa econômico imposto aos países europeus pela troika  (FMI, BCE e Comissão Europeia) é, certamente, o maior arrocho fiscal jamais observado na Europa desde a Segunda Guerra. No entanto, é vendido pela mídia como um programa de “austeridade”. Austeridade, diferentemente de arrocho, tem um sentido positivo. O uso dessa palavra esconde o propósito subjacente de destruir o sistema de bem estar social europeu – como, aliás, deixou claro o presidente do BCE, Mario Draghi, conforme entrevista recente que já mencionei aqui.

Antes da proposição de austeridade falava-se em “responsabilidade fiscal”. A terminologia da responsabilidade fiscal, cujo objetivo último tem sido o de reduzir o papel do estado na economia, inclusive na área social, deu o rótulo a uma lei extremamente regressiva no Brasil, anulando a federação em matéria financeira. No novo contexto mundial, contudo, responsabilidade fiscal parece pouco. É preciso dar um passo adiante. Austeridade implica impor sacrifícios à sociedade e reduzir seu nível de bem estar, tudo considerado como algo positivo.

O porta-voz preferencial da mídia para o anúncio de políticas regressivas sob rótulos ideológicos positivos é o “mercado”. O mercado é um ente de razão que assume características antropomórficas singulares: fala, critica, elogia, reage, argumenta, desconfia. O mercado diz por que a bolsa caiu, por que o governo tem que reduzir a dívida pública, por que o BC deve aumentar a taxa de juros. É a cobertura do anonimato para as opiniões dos próprios jornalistas. Ao lado do mercado, claro, estão os “especialistas” de banco. Sobre eles dizia Galbraith: não dá para confiar em opinião de quem tem interesse próprio em jogo.

* J. Carlos de Assis é economista, professor da UEPB, co-autor, junto com Francisco Antonio Doria, de “O universo neoliberal em Desencanto”, recém-lançado pela Civilização Brasilseira.