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Cora, Leila e o Poeta

Donas de palavras poderosas, que mudaram seus mundos, tanto Leila Diniz quanto Cora Coralina declararam aos quatro ventos e sem censura suas descobertas íntimas da alma feminina. Nenhuma das duas respeitava regras de gramática, que dirá as sociais. Transgressoras, foram redimidas pela liberdade que conquistaram para as mulheres e pelo lirismo que inspiraram em poetas, como Drummond.

Por Christiane Marcondes

Cada uma no seu tempo, com estilos diferentes, foi além do que a própria geração definia como fronteira. Cora é de 1889, uma autêntica dama do século 19 que fugiu da cidade natal para se casar com um desquitado. Leila, de 1945, tornou-se a verdadeira garota de Ipanema aos 18, sempre de biquíni e pés descalços na areia quente.

Leila Diniz nasceu "atriz nas águas" da primeira cena de Todas as mulheres do mundo, filme dirigido pelo então ex-marido Domingos de Oliveira em 1966.

Cora Coralina nasceu "escritora das pedras", que são invocadas em um poema seu do mesmo nome. Foi batizada pelos pais como Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, nome comprido que trocou aos 50, em 1939, pelo ritmado pseudônimo. Com ele lançou-se como uma das mais notáveis poetas brasileiras do século 20.


Cora Coralina quando ainda era a Aninha

Em 1965, com 76 anos, Cora Coralina publicou o primeiro livro, embora escrevesse desde os 14. No mesmo ano, Leila Diniz bateu a porta da cobertura onde morava com Domingos e saiu do casamento curto de dois anos.

Em 1969, Leila Diniz era a “mocinha” das novelas da Globo, mas deu uma entrevista cheia de  palavrões para o Pasquim e foi vetada no meio artístico, perdeu o emprego. Dançou, no bom sentido, para sobreviver. E com divas da música como Dalva de Oliveira.

Diniz tinha a inteligência e humor para tornar-se próxima de grandes talentos, como Cacilda Becker, com quem fez uma peça antes de deixar oficialmente a profissão de professora, aos 19, e Manuel Bandeira, que a seguia pela noite em improváveis desvios da sua rotina de vida.

Em 1971, tornou-se a primeira mulher a exibir barriga de grávida na praia, um ato histórico em favor da emancipação feminina. Leila é dinossaura na grande arte, hoje tão festejada, dos midiáticos.


Leila Diniz grávida, posando para foto de revista

Cora Coralina nunca freqüentou manchetes de jornal, não com esse tipo de apelo, mas também foi pioneira entre as donzelas, rompendo paradigmas. Em 1984, torna-se a primeira mulher a receber o Prêmio Juca Pato, como intelectual do ano de 1983.

Leila tornou-se mãe de Janaína aos 26 e, um ano depois, em 1972, morta de saudade apressou sua volta de uma viagem de trabalho. O avião caiu poucos minutos antes de pousar em Nova Deli, uma das escalas do vôo. Com esse desfecho trágico sua vida imediatamente foi recontada. De profana, fez-se sagrada. Leila viveu intensamente no tempo curto de um suspiro.

Cora igualmente intensa viveu com renovado fôlego 96 anos, teve seis filhos, quinze netos e 19 bisnetos, foi doceira para sobreviver e membro efetivo de diversas entidades culturais, tendo recebido o título de doutora "Honoris Causa" pela Universidade Federal de Goiás. No dia 10 de abril de 1985, faleceu em Goiânia.

Separadas por 56 anos de idade, Cora e Leila, nas suas lutas, desafios e perdas, não se deixaram rotular e tiveram pelo menos um admirador ilustre em comum, Carlos Drummond de Andrade. Que nunca deixou passar despercebidas as mulheres incomuns da arte e da vida. Com vocês, a prosa poética e epistolar do grande mestre dos versos…

Para Leila

“Leila Diniz – sobre as convenções esfarinhadas mas recalcitrantes, sobre as hipocrisias seculares e medulares: o riso aberto, a linguagem desimpedida, a festa matinal do corpo, a revelação da vida.
Leila Diniz – o nome acetinado de cartão postal, o sobrenome de cristal tinindo e partindo-se, como se parte, mil estilhas cintilantes, o avião no espaço – para sempre.
Para sempre – o ritmo da alegria, samba carioca, no imprevisto da professorinha ensinando a crianças, a adultos, ao povo todo, a arte de ser sem esconder o ser.
Leila para sempre Diniz, feliz na lembrança gravada: moça que sem discurso nem requerimento soltou as mulheres de vinte anos presas ao tronco de uma especial escravidão.”

Todas as mulheres do mundo

Para Cora

"Minha querida amiga Cora Coralina: seu "Vintém de Cobre" é, para mim, moeda de ouro, e de um ouro que não sofre as oscilações do mercado. É poesia das mais diretas e comunicativas que já tenho lido e amado. Que riqueza de experiência humana, que sensibilidade especial e que lirismo identificado com as fontes da vida! Aninha hoje não nos pertence. É patrimônio de nós todos, que nascemos no Brasil e amamos a poesia (…)"

Das pedras, por Cora Coralina