Amazonas lança o seu bacalhau tropical

Bacalhau da Amazônia é tema de reportagem do jornal Valor Econômico do último fim de semana.

Ele é grande, gorduroso, tem a carne escura e só nada nas águas mornas dos trópicos Mas graças a uma iniciativa público-privada inédita, o pirarucu, um dos maiores peixes da Amazônia, chegará este ano à mesa dos brasileiros de outra forma: como bacalhau.

Essa, pelo menos, é a expectativa da comunidade ribeirinha da Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá, responsável pela pesca controlada, do governo do Amazonas, que bancou o projeto, e do Grupo Pão de Açúcar, que terá exclusividade para a distribuição do produto no país.

O processo de produção já está em andamento. Por meio de um investimento de R$ 1,5 milhão, divididos entre o Estado e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), uma fábrica para a salga do pirarucu foi montada dentro da reserva, com capacidade de processamento de 1,5 mil toneladas de peixe por ano. Batizada de Agroindústria de Maraã, a planta foi entregue em agosto, emprega 80 operários locais e recebe peixes de exatos 1.001 pescadores. É um número nada desprezível no universo de oito mil habitantes em Mamirauá. E pode representar não só uma guinada na renda dessa parcela da população como dar sentido econômico para a preservação de uma área altamente biodiversa da Amazônia.

Pirarucu seco, o bacalhau amazônico

“Esse projeto corresponde a uma política de sustentabilidade real e não ficcional”, diz Eron Bezerra, da Secretaria de Estado da Produção Rural (Sepror) e entusiasta do projeto. “É um passo importante para a verticalização da produção regional do Amazonas – ainda muito dependente da Zona Franca de Manaus. Fizemos a primeira fábrica de bacalhau da América do Sul. É uma experiência distinta de tudo o que se fez até hoje. Não podemos errar”.

Mas pirarucu pode ser vendido como bacalhau? “Não existe um peixe chamado bacalhau. Ele é o resultado de uma metodologia de processamento de salga”, explica a veterinária Meg Felippe, especialista no assunto dentro do Pão de Açúcar. A literatura mostra que tradicionalmente cinco espécies são “transformadas” para esse fim (ver gráfico). São peixes de águas profundas e frias – por isso os mais famosos exemplares saem da Noruega e de Portugal.

Entendedores dizem ser possível distinguir uma espécie de outra até na bandeja – filés mais carnudos, mais ou menos escuros, fibrosos. O pirarucu, assim, viria para engrossar esse caldo. “É uma tentativa de tropicalização do bacalhau”, afirma Meg.
“A nossa primeira meta é vender para o Pão de Açúcar. A segunda é vender aos noruegueses”, diz, provocativo, Bezerra.

No ano passado, o pirarucu foi processado e distribuído, sob a marca “Bacalhau da Amazônia”, apenas para o mercado local. Chegaram à fábrica 5.865 peixes – cerca de 130 toneladas. Por serem manejados, o Ibama fica responsável pela determinação de uma cota anual de pesca, que se baseia na evolução da população de pirarucus. Só é permitido retirar 30% dos adultos contados no levantamento feito todos os anos de estoque de peixes, para que não se corra o risco de sobrepesca. É considerado adulto exemplares com no mínimo 1,5 metro.

A prova de fogo será nesta Páscoa, quando o primeiro bacalhau brasileiro será direcionado para os mercados consumidores do Sul e Sudeste. A princípio, o mesmo volume de peixe de 2011 está sendo considerado para este ano.

“É um projeto de sustentabilidade fascinante”, diz Paulo Pompilho, diretor de Relações Institucionais do Pão de Açúcar. Nos últimos meses, o executivo viajou diversas vezes à Mamirauá para acertar detalhes do negócio e orientar à comunidade sobre como atingir os padrões de qualidade exigidos pelo grupo. Ele conta que a salga do pirarucu ocorre há muito tempo. Por tradição, quando o peixe começava a estragar, os ribeirinhos o salgavam para estender o prazo de consumo da carne. “O desafio foi fazer entender que o processo de salga deveria ser o contrário, com o peixe fresco”. A expectativa do Pão de Açúcar – que vende mais de cinco mil toneladas de bacalhau importado a cada ano – é que o bacalhau amazonense abocanhe pelo menos 5% desse mercado.

A pesca representa 65% da renda dessas comunidades. O elo dessa cadeia que começa com o manejo correto e passa pela fábrica local, se estende pela garantia de compra total do produto pelo governo do Amazonas e encerra com a garantia de compra e distribuição do Pão de Açúcar. A Sepror subiu o pagamento do quilo de pirarucu, vendido antes a R$ 3,50, para R$ 5,50. De acordo com Bezerra, o lucro da venda para o grupo varejista será integralmente revertido para Mamirauá.

Para 2012, uma segunda fábrica de processamento de bacalhau está prevista no município de Fonte Boa, também dentro da reserva, o que deve elevar a capacidade instalada total para 5 mil toneladas de bacalhau por ano.

Ana Cláudia Torres, técnica em manejo de pesca do Instituto Mamirauá, acredita que o atrativo dessas iniciativas é também uma oportunidade de provocar a migração para a legalidade nesse mercado. O pirarucu é uma presa relativamente fácil porque se locomove pouco e sobe à superfície para respirar, tirando praticamente todo o dorso para fora da água. Ela estima que ao menos quatro toneladas vendidas por mês são resultado de pesca ilegal.

O manejo do pirarucu é feito entre outubro e novembro. De 1º de dezembro a 31 de maio é decretado o período de defeso, e os meses restantes são de espera do aval do Ibama. Por esse motivo, o governo estadual já estuda criar novos projetos para dar sustentação à fábrica. “Já que não temos matéria-prima para todo o ano, vamos processar outros tipos de peixes de menor valor agregado”, afirma Bezerra. Entre as possibilidades estão o surubim, o pintado, o jaraqui e o piramutaba, todos típicos exemplares da região.

Por Bettina Barros / Valor Econômico