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Mohamed Habib: A revolução árabe ainda não terminou

Há um ano, quando o tunisiano Mohammed Bouazizi ateou fogo no próprio corpo, não podia supor que as chamas daquele gesto de protesto incendiaram o mundo árabe. Começavam ali os levantes populares que derrubaram quatro governos – Tunísia, Egito, Líbia e Iêmen – e plantaram uma semente da indignação que germinou mundo afora. Embora 2011 tenha sido palco da Primavera Árabe, o ano acabou sem que suas flores fossem colhidas, avalia o professor Mohamed Habib. Para ele, a revolução árabe não acabou.

Por Joana Rozowykwiat

Desdobramentos dos levantes de 2011 virão no próximo ano / Foto: Envolverde

Vice-presidente do Instituto de Cultura Árabe (ICArabe), Mohamed Habib defende que, para avaliar as revoltas e suas perspectivas, é necessário ter em vista as questões geopolíticas e econômicas envolvidas. "A maior parte das análises sobre esse assunto fica restrita ao mapa do Oriente Médio. Mas tudo que está ocorrendo nesses países árabes tem tentáculos fora dali", afirma.

De acordo com o professor, a origem das manifestações está no fato de que, a partir da primeira guerra mundial, os países do Oriente Médio passaram por um processo de degradação socioeconômica por força das interferências do Ocidente. Esse processo foi se acentuando e chegou a um patamar insustentável em 2011.

Na Tunísia, o desemprego, no ano passado, atingia 13,9% da população. No Egito, mais de 42% da população encontra-se abaixo da linha da pobreza. Jovens estão sem emprego há vários anos, apesar de formados em boas universidades. "São países que têm um nível intelectual elevado, uma história e uma cultura muito ricas, um potencial econômico razoável, no entanto, a população vive na miséria", detalha Habib.

"Esse povo sem esperança começa então a se revoltar pacificamente contra essa deterioração, que não tinha justificativa, a não ser a de que esses países possuiam governos corruptos, que tiravam as suas riquezas de forma ilícita e as depositavam em contas nominais dos governantes nos bancos fora da Tunísia e do Egito", continua o professor.

Segundo ele, na época em que começaram os levantes no Cairo, bancos suíços declararam que as contas do ex-presidente Hosni Mubarak somavam mais de US$ 75 bilhões, mais que o dobro da dívida externa do país que o ditador "desgovernava" há 30 anos. "Ele roubou o Egito, e o caso da Tunísia não é diferente. Então esses primeiros levantes tinham uma agenda sustentada pela deterioração socioeconômica, mas, à medida que foram crescendo, incluíram outros itens, como a democratização e a reestruturação política desses países".

Habib destaca, contudo, que há um outro grupo de países onde a situação foi diferente. O professor cita o caso da Líbia, onde as condições de vida da população são bem melhores e o problema era, então, político.

"Com uma população pequena, a renda do petróleo e a estratégia montada pelo Muamar Kadafi, não havia miséria na Líbia, mas faltava liberdade de expressão, democracia", opina, fazendo um paralelo com o Bahrein e a Síria, locais em que o povo também tem se manifestado em prol de mudanças na política. "Já no Iêmen, juntaram-se as questões. Nem há condições de vida aceitáveis, nem democracia", avalia.

Pano de fundo: recursos energéticos

Por trás da situação econômica e política do mundo árabe, está o objeto de maior cobiça das potências ocidentais: os recursos energéticos, mais especificamente, petróleo e gás natural, que estão presentes nesses países.

"Desde a primeira guerra mundial, o conceito aplicado ali é o de que esses países não podem ter democracia, não podem se desenvolver, porque desenvolvimento socioeconômico implica, obrigatoriamente, em gastos energéticos maiores. E, se eles começam a gastar mais, vai faltar energia para o outro lado, o Ocidente. Ou então será preciso pagar mais caro", coloca.

Mohamed Habib informa, por exemplo, que a Lìbia gasta menos de 15% dos seus recursos energéticos. A Arábia Saudita utiliza menos ainda, 8%. O restante é exportado. Situações semelhantes ocorrem no Iraque e Kuwait.

"Para os países do Ocidente é importante manter estas ditaduras, porque eles querem que o mundo árabe continue 'estável', mas a partir da opressão. Só que um estado que vive sob opressão não tem uma estabilidade real", afirma Habib. Afinal, quando uma sociedade vive sob pressão, chega um momento em que exploide. A primeira reação veio da Tunísia, desencadeada por Mohammed Bouazizi e seu protesto que, no fundo, era contra o desemprego e a miséria.

A revolução continua

As manifestações na Tunísia e, depois, no Egito – que derrubaram os respectivos governos – estimularam os jovens e insatisfeitos de outros países. Iêmen, Marrocos, Síria, Bahrein e Líbia, também foram às ruas, inspirando movimentos desde a Espanha até os Estados Unidos.

Habib conta que, no princípio dos levantes árabes, Estados Unidos e Europa não se manifestavam ou expressavam preocupações, declarando apoio aos ditadores que eram alvo dos protestos.

“Mas quando eles percebem que esses movimentos cresceram e que o governante está enfraquecido, começam a manifestar apoio aos protestos, a contatar essas forças e se articulam com eles, para que, quando aconteça a vitória, eles continuem sob o comando do Ocidente”, conta o professor, citando como símbolo dessa estratégia a Líbia.

Habib cita ainda o exemplo do Egito, onde as Forças Armadas, que assumiram o comando do país temporariamente após a queda do ditador Hosni Mubarak, estariam tentando manobras para manter-se no poder. “Eles querem se colocar acima do Congresso e do presidente que deverá ser eleito no ano que vem e, com isso, virariam uma ponte de conexão com os Estados Unidos. Mas isso a sociedade do Egito não aceita mais”, vaticina.

Nesse sentido, os egípcios continuam os protestos contra a Junta Militar e, por isso, têm sido reprimidos com violência pelas forças que antes pareciam aliadas ao movimento. “É uma situação complicada, que faz com que essa Primavera Árabe esteja parecendo mais um outono ou um inverno, para não dizer um inferno, porque não vimos ainda nenhuma flor, a não ser no caso da Tunísia, que aparentemente, terminou em paz”, afirma o professor.

Mohamed Habib acredita que 2012 será o ano de amadurecer esses processos e que os resultados positivos – ou as flores, como ele diz -, só devem vir no segundo semestre. “Até lá, acho que ainda vai ter mortos, ainda vai ter sangue, violência, deterioração socioeconômica, do apoio logístico, do saneamento, do abastecimento, do trânsito”, previu.

Para o professor, a transição para a democracia nos países árabes pode ser mais rápida, caso a crise econômica que aflige a Europa e os Estados Unidos se acentue. “Se a crise piorar, esses países vão concentrar seus esforços na realidade local e, portanto, pensarão menos em invasões, guerras e investimentos bélicos. Isso pode fazer com que eles fechem os olhos um pouquinho e deixem o mundo árabe em paz para resolver internamente suas questões”.

“O que está em jogo hoje é até quando o Ocidente consegue enganar ou anestesiar sua própria sociedade civil, que está cansada de intervenções, dessas posturas antiéticas. O Ocidente era visto como um modelo de ética, de democracia, respeito aos direitos humanos, à mulher, e, de repente, lideram movimentos de violência e invasões. Até quando esses governos têm condições de convencer seus povos de que intervenções no Oriente Médio são necessárias?”, questiona.

Palestina

A questão palestina também esteve no centro do debate durante este ano. Para Mohamed Habib, se da revolução resultar um Egito mais autônomo e soberano, a Palestina sairá muito beneficiada. “Se o novo congresso e o novo presidente conseguirem ocupar um espaço de independência e coragem para defender os direitos do povo palestino, será muito importante para resolver este conflito”, opina.

Ele destaca que a recente troca de um soldado israelense por 1020 presos palestinos já é um sinal de mudanças. “Israel já começa a sentir a perda de um aliado, que era Mubarak”, diz, defendendo que, embora Tel Aviv possa se sentir prejudicada a princípio, a médio e longo prazo, a melhor solução para o mundo árabe e Israel é a democratização de todos os países da região.

“Porque os acordos entre países democráticos sempre contam com o apoio da população. Já nos países em ditadura, o acordo sempre é pessoal, sem apoio popular e, portanto, instável. A democratização é o melhor caminho para um acordo de paz duradouro e permanente entre Israel, Palestina e os países árabes em geral”, conclui.