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A incrível história do PM João Dias (Primeira parte)

O golpe que derrubou Orlando Silva

Você acredita? O ex-ministro teria montado, na garagem de seu próprio ministério, uma espécie de ponto no qual recebia dinheiro ilícito para a campanha de Lula em 2006. Com isso, queria agradar o ex-presidente e continuar no cargo.

Por Raimundo Rodrigues Pereira

Dilma e Lula em Manaus out 2011 - Roberto Stuckert Filho

1. Os antecedentes da denúncia: a ameaça de sequestro dos bens do denunciante

No início de outubro deste ano, quando deu à revista Veja a entrevista na qual afirmou que o ministro do Esporte, Orlando Silva, obteve R$ 1 milhão ilicitamente, o policial militar João Dias Ferreira estava preocupado. Nascido em Brasília, dono de negócios que haviam crescido desde que entrara para a política, poucos anos antes, ele estava ameaçado de perder tudo. Perdera as eleições de 2006, quando fora candidato a deputado distrital pelo PCdoB. Aparentemente, por fatos que depois contaremos, perdera também o apoio do homem que ele se empenhara em eleger em 2010 e do qual esperava favores, o governador do Distrito Federal (DF), Agnelo Queiroz. E poderia perder ainda seus bens – três apartamentos pequenos, uma casa grande e três academias de ginástica – relativamente muito para um simples policial militar de 39 anos.

Duas ações estavam sendo movidas na Justiça Federal contra ele. A origem delas eram investigações iniciadas na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, pela pasta do Esporte, comandada por Silva. Uma fiscalização realizada pelo ministério, no começo de 2006, no convênio que ele assinara em nome da Federação Brasileira de Kung Fu (Febrak), e pelo qual recebera do governo R$ 2,04 milhões, seguira um longo processo até ser transformada numa Tomada de Contas Especial (TCE).

A TCE é o procedimento federal mais drástico para recuperar recursos do poder público desviados indevidamente. Ela prevê até o confisco dos bens dos responsáveis pelo convênio. A TCE do convênio de Ferreira, batizado no ministério como 026/2005, ano de sua assinatura, resultara em duas ações contra ele, uma civil e outra criminal. E o PM tinha razões para temê-las. Elas foram encaminhadas pela procuradora da República no DF Raquel Branquinho, conhecida em Brasília, local onde há muita gente tida como “ficha-suja”, por sua competência e honestidade. Na ação civil, a procuradora pedia a concessão de uma liminar para o confisco imediato dos bens do acusado.

A incrível história de Ferreira será contada por Retrato do Brasil em dois capítulos, de certo modo inextricáveis. Os aspectos administrativos e policiais, que podem parecer os mais interessantes, não são, no entanto, os mais importantes. Começaremos, portanto, pela outra parte, a política. Com a denúncia feita a Veja, em pouco tempo Ferreira virou uma celebridade, uma espécie de herói nacional. A matéria da semanal foi citada no “Fantástico” do domingo, 16 de outubro, da Rede Globo, um dos programas de maior audiência do país. Na segunda, 17, O Estado de S. Paulo, talvez o diário brasileiro de maior prestígio, dedicou um editorial a um pedido de demissão do ministro e fez matérias em cinco páginas para denunciar desmandos no ministério que favoreceriam o partido dele, o PCdoB.

A notícia espalhou-se rapidamente. Entre os dias 15 e 27 de outubro, quando Silva, finalmente, pediu demissão, houve cerca de uma centena e meia de artigos, contando apenas as matérias publicadas pelas quatro grandes revistas semanais – Veja, Época, IstoÉ e CartaCapital – e pelos quatro grandes jornais diários – O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, O Globo e Valor Econômico –, que frequentemente têm seus conteúdos repetidos milhares de vezes por centenas de comentaristas e apresentadores de notícias nas emissoras de rádio e TV e nos pequenos jornais.

Era uma notícia escandalosa, com detalhes pitorescos que, como se sabe, são o que mais chama a atenção: o ministro teria embolsado o dinheiro na garagem do próprio ministério, que seria uma espécie de ponto para entrega de dinheiro ilícito. “Ministro recebia dinheiro na garagem” era a chamada de capa da Veja que circulou a partir de 15 de outubro. Nela, Ferreira apontava um segundo personagem, Célio Soares, que contou à revista ter levado dinheiro pelo menos quatro vezes à garagem do ministério, sempre junto com Fredo Ebling, chefe do gabinete da liderança do PCdoB na Câmara dos Deputados e uma figura histórica do partido em Brasília.

A entrega do milhão ao ministro teria ocorrido no fim de 2008. “[Fredo] me ligou e disse que era para eu estar às quatro e meia da tarde no subsolo do ministério onde uma pessoa estaria lá esperando. O ministro estava sentado no banco de trás do carro oficial. Ele abriu o vidro e me cumprimentou. O motorista dele foi quem pegou a caixa com o dinheiro e colocou no porta-malas do carro.” Na entrevista que deu a Veja, publicada num texto destacado na mesma matéria, com o título de “Até 20% a cada liberação”, Ferreira completava o que parece ser o argumento básico de sua extraordinária história. Dizia que tinha sido procurado em 2004 por pessoas do PCdoB pedindo que entrasse, com as suas entidades, no Programa Segundo Tempo (PST), para crianças de famílias de baixa renda, do Ministério do Esporte, então chefiado por Agnelo Queiroz, hoje governador do DF. As entidades referidas por Ferreira são duas. Ambas têm convênios já rescindidos com o Ministério do Esporte e, por eles, a Procuradoria-Geral da República (PGR) quer que o PM devolva cerca de R$ 4 milhões aos cofres públicos:

1. a Febrak – com a qual ele obteve os R$ 2,04 milhões do convênio 026/2005, já citado; e

2. a Associação João Dias de Kung Fu e Fitness, com a qual ele fez o convênio 211/2006 e obteve do governo federal cerca de mais R$ 1 milhão.

O PCdoB, dizia o PM, lhe teria dito em 2004 que ele receberia verbas. Mas impôs três condições. Ele “tinha que dar até 20% [ao PCdoB] no ato de cada liberação de verba do ministério, contratar fornecedores ligados ao esquema e ainda ajudar a recrutar militantes”. Ferreira se diz inocente de tudo: “Me faltou conhecimento jurídico. Entrei sem saber que tudo era uma grande armação”. Posteriormente é que teria visto o problema. “Aceitei, mas depois vi que aquilo era uma máfia. Na eleição de 2006”, continua Ferreira na entrevista citada, “eu tinha mais de 1 milhão em uma das contas. Era dinheiro que tinha sobrado e estava em trâmite para ser devolvido à União. Me disseram que precisavam daquele dinheiro para botar na campanha.” Ele teria mandado um auxiliar seu fazer a operação. Depois descobriu que tinha sido enganado. “O Orlando [Silva] usou esse dinheiro para pagar uma gráfica que fez adesivos da campanha do Lula em Brasília. Ele queria agradar o Lula para continuar ministro no segundo mandato.”

A história de Ferreira parece fantasiosa. O ministro Silva teria organizado na garagem de seu próprio ministério, local completamente coberto por câmeras de vigilância, um ponto de recebimento de dinheiro ilícito para imprimir material de campanha, agradar o presidente e, desse modo, quando Lula ganhasse as eleições presidenciais de 2006, não chamasse Queiroz de volta para a Esplanada, mas, ao contrário, mantivesse Silva como ministro? Isso não bate sequer com o relato do homem que ele apresentou a Veja como sendo a testemunha da entrega de dinheiro ao ministro, Soares, seu comandado, “gerente de uma das unidades da rede de academias que o soldado João Dias possui”, segundo informa a revista. Soares diz que o dinheiro a Silva foi entregue em fins de 2008, não em 2006.

Mais fantasiosa ainda é a história de que o PM estava, como diz a Veja, “em trâmite” para devolver R$ 1 milhão à União. No segundo capítulo de nossa história, contaremos com detalhes a tramitação dos convênios 026/2005 e 211/2006, assinados pelas entidades controladas por Ferreira com o Ministério do Esporte, e a sucessão de prazos que o PM pediu e descumpriu, desde que, no começo de 2006, a fiscalização do ministério descobriu que ele tinha recebido todo o dinheiro do primeiro convênio, mas realizara apenas parcialmente o prometido no contrato. O ministério deu-lhe prazos para prestar contas, mas ele o fez apenas no final de outubro de 2007, quando, então, elas foram totalmente rejeitadas. Fantasiosa ou não, no entanto, a história do PM foi, inicialmente, um sucesso.

O herói explica como o golpe funciona

Em sua casa, uma mansão no Condomínio Vivendas Bela Vista, no bairro Colorado, em Brasília, com a ajuda de um funcionário de seu esquema de segurança, o ex-campeão brasileiro e presidente da Fundação Brasiliense de Kung Fu, João Dias Ferreira, nos seus dias de herói da grande mídia, simulou para a reportagem do jornal O Globo um golpe da sua grande arte. O tempo passou e agora é a sua história do milhão de reais que teria sido entregue ao ex-ministro Orlando Silva na garagem de ministério do Esporte, que precisa ser mais bem explicada (refere-se à ilustração da capa, no primeiro bloco).