Mônica Martins: A África que eu vi

Apesar da persistente diáspora, dos anos de recém-findas guerras civis e das desigualdades sociais visíveis no contraste entre casas e carros luxuosos ao lado de equipamentos públicos semidestruídos, a África que desfilava ante meu olhar curioso era bem diferente daquela consagrada por uma visão de mundo que infantiliza os povos, negando-lhes o direito à história antes do contato com a dita “civilização”, e lhes atribui todo tipo de misérias materiais e imateriais

Não esperava ver leões, zebras, nem a floresta de Tarzan e Chita, com caçadores brancos de bermudas cáqui e guerreiros negros de rostos tatuados. Tampouco me deparei com gente faminta e triste, crianças perambulando pelas ruas, “flanelinhas” em esquinas, pedintes nas escadarias de igrejas e mendigos estendidos nas calçadas. Não vi a miséria invariavelmente apresentada como marca da África, em peças promocionais de associações filantrópicas, religiosas e não-governamentais, nos documentos de instituições financeiras internacionais ou nas reportagens das grandes agências de notícias.

Em visita a países africanos de idioma oficial português, contrariando expectativas, encontrei uma população urbana que mantém vivas as línguas de seus ancestrais, faladas cotidianamente por residentes e imigrantes de Estados vizinhos – a exemplo do crioulo, de uso generalizado nas ilhas de Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, ou do suaíli, em Moçambique, Quênia, Tanzânia e Uganda – e ambulantes orgulhosos, que lotam as cidades em busca de compradores para variadas mercadorias estrangeiras e artesanais, como as coloridas capulanas, uma espécie de manta usada pelas mulheres, e variadas estátuas de ébano, vendidas com um selo atestando a permissão oficial de que o objeto pode deixar o país.

Conheci jovens talentosos que percorrem o território fértil e densamente povoado da Guiné-Bissau, levando a mensagem do Tiniguena – “esta terra é nossa” em crioulo – de valorização dos saberes e produtos das diferentes etnias; pesquisadores independentes de centros de estudos como a Associação para o Desenvolvimento Rural e Ambiental (ADRA), em Luanda, o Instituto de Estudos Sociais e Econômicos (IESE), em Maputo, e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), em Bissau, que combateram o colonialismo português e, hoje, com igual vigor, pelejam para produzir conhecimentos capazes de alimentar o debate político sobre os destinos de seus povos.

As conversas se prolongaram com as experientes professoras-doutoras da Universidade Eduardo Mondlane, sociólogo moçambicano que liderou a independência nacional (1920-1969), críticas tanto da prática tradicional de casamento, denominada lobolo (dote pago à família da noiva pelo noivo, em dinheiro, gado ou outros bens materiais), quanto do moderno sistema acadêmico de Bolonha (tratado para unificar o ensino superior europeu e elevar sua competitividade), sempre esperançosas de educar uma nova geração que leve adiante os sonhos pan-africanistas de pensadores como o poeta-médico angolano Agostinho Neto (1922-1979) e o romancista-agrônomo guineense Amilcar Cabral (1924-1973).

Apesar da persistente diáspora, dos anos de recém-findas guerras civis e das desigualdades sociais visíveis no contraste entre casas e carros luxuosos ao lado de equipamentos públicos semidestruídos, a África que desfilava ante meu olhar curioso era bem diferente daquela consagrada por uma visão de mundo que infantiliza os povos, negando-lhes o direito à história antes do contato com a dita “civilização”, e lhes atribui todo tipo de misérias materiais e imateriais.

Em boa hora começa a funcionar aqui no Ceará, no município de Redenção, a Universidade Luso-Afro-Brasileira, a Unilab. A iniciativa pretende formar pessoal nas áreas de interesse comum aos países de língua portuguesa e analisar as relações África-Brasil em perspectiva histórica, somando-se, assim, a programas governamentais do qual participam centenas de estudantes africanos que frequentam instituições de ensino superior, públicas e privadas cearenses. É tempo de fomentar a discussão no meio acadêmico, técnico e político acerca das novas perspectivas no relacionamento com uma região do mundo que, embora pouco conhecida, constitui uma das mais instigantes para quem investiga processos de formação dos Estados nacionais e seus vínculos com as Nações Unidas.

Mônica Dias Martins é professora da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e Coordenadora do Observatório das Nacionalidades

Fonte: O POVO