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Bercht: aquecimento global, entre ursos e arbustos

O debate sobre as mudanças no clima mobiliza governos, organizações ambientais, e muitos cientistas. O IPCC, da ONU, baseia suas recomendações naquilo que chama de “consenso científico”, e minimiza opiniões críticas. Os modelos climáticos que usa são frágeis e podem ser os vilões da história.

Por Verônica Bercht *

“À noite, com algum medo, é fácil confundir um arbusto com um urso”. (William Shakespeare, O sonho de uma noite de verão, Ato 5º, Cena Primeira). Com esta frase o polêmico jornalista e analista político inglês Christopher Booker abre seu livro The real global warming disaster (O verdadeiro desastre do aquecimento global. Londres, Continuum, 2009), onde pretende mostrar que a “obsessão com a ‘mudança do clima’ está se revelando o engodo científico mais caro da história”. Este livro engrossa uma leva de publicações recentes que se contrapõe à enxurrada de obras dedicadas à defesa e divulgação da tese que ficou conhecida como “aquecimento global”.

Embora tenha sido divulgada como “consenso científico”, sendo, assim, alçada ao status de “verdade”, a hipótese de que o CO2 emitido pelas atividades humanas é o principal responsável pelo aumento da temperatura da superfície da Terra nos últimos 150 anos foi contestada desde o início. Inicialmente, o debate ocorreu dentro das formalidades da produção científica, em artigos publicados em revistas especializadas, nas observações das revisões dos rascunhos dos relatórios do Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas (IPCC) e em intervenções em encontros e congressos científicos.

Nas páginas de jornais e revistas, o debate – etapa essencial para o avanço do conhecimento – ganhou contornos de perseguição religiosa. Ao mesmo tempo, o discurso do aquecimento global se institucionalizou de tal forma que, entre os letrados, são raros os que duvidam do poder humano para provocar o colapso climático caso medidas imediatas para a redução dos níveis de emissão do dióxido de carbono não sejam adotadas.

Mas serão os crédulos que tomam arbusto por urso, ou os céticos que confundem urso com arbusto?

Não há uma resposta fácil. Se a dinâmica climática é complexa e envolve conhecimentos especializados de várias ciências como astronomia, meteorologia, oceanografia e biologia, a dificuldade também se revela por outro lado: cientistas são pessoas comuns, com ambições, visões políticas e interesses nem sempre explícitos, mas necessariamente inerentes à sua atividade.

Além disso, o financiamento científico não está imune aos interesses de classe. Há ainda que se considerar que não estão claras as relações entre a institucionalização das teses do aquecimento global com a expansão das fronteiras do capitalismo sobre recursos naturais como a água, o ar e o material genético, transformados em mercadorias.
Este ensaio pretende apresentar um dos principais pontos de divergência entre céticos e crédulos e analisar as incertezas existentes na ciência climática – incertezas assumidas pelos crédulos e que, segundo os céticos impedem definir se a sombra disforme é um urso amedrontador ou apenas um arbusto, mesmo que nem sempre inofensivo.

A sombra disforme

A manifestação mais contundente da inexistência do consenso científico é o Projeto Petição (Petition Project, Disponível em: http://www.petitionproject.org/. Acessado em: 31/08/2010) que, em 1998, articulou cientistas norte-americanos contrários à assinatura do Protocolo de Quioto por não existirem, em sua opinião, evidências científicas capazes de responsabilizar a ação humana pelo aquecimento do planeta. Mobilizou, no total, 30 mil cientistas.

Sua atitude pode ser tomada como uma enorme heresia ambiental. Mas ela é coerente com as conclusões registradas no artigo científico que acompanha a petição, intitulado “Efeitos ambientais do aumento do dióxido de carbono atmosférico”, publicado em 2007, na Journal of American Physicians and Surgeons (esta revista é dedicada à área médica, e isso pode causar estranheza. No entanto, segundo consta no site do Projeto, ela foi escolhida porque “estava disposta a renunciar aos direitos autorais e permitir a reprodução e distribuição extensiva do artigo pelo Projeto Petição”. Atualmente, os direitos autorais das revistas científicas são um dos grandes entraves para o acesso à produção do conhecimento).

Divergências são inerentes ao fazer científico na fronteira do conhecimento e indicam vitalidade e criatividade. Elas estimulam novas pesquisas e novos rumos de investigação. Já o cerceamento da liberdade pode levar à decadência ou estagnação, com consequências desastrosas. Nesse sentido, a história é um celeiro de casos infelizes, que vão desde a resistência dos cardeais contra as descobertas de Galileo Galilei até o desastre que as opiniões do agrônomo Trofim D. Lysenko provocaram na agricultura soviética séculos mais tarde.

Na Revisão dos processos e procedimentos do IPCC, divulgada em 31 de agosto de 2010, o comitê independente de especialistas reunido pelo InterAcademy Council (IAC), que agrega academias de ciências de diversos países, apontou vários problemas no processo de elaboração dos relatórios do IPCC. Aquele comitê foi instaurado após acusações contra a instituição da ONU.

A Revisão inclui recomendações para assegurar que o IPCC leve em conta opiniões divergentes; considera que houve falta de transparência pelo IPCC, ressaltando “a inexistência de critérios para a seleção dos principais participantes no processo e a falta de documentação sobre a seleção das informações científicas e técnicas consultadas”.

A Revisão do Comitê recomendou o respeito aos comentários críticos dos cientistas pelo IPCC, a transparência nos critérios de seleção dos participantes que elaboram os relatórios do IPCC assim como dos artigos científicos consultados, e a explicitação das incertezas que recaem sobre as conclusões apresentadas pelo IPCC, especialmente nos Sumários para os Formuladores de Políticas, que é o documento destinado a ampla divulgação.

A Revisão reconhece assim a procedência das críticas aos procedimentos do IPCC feitas pelos céticos desde o inicio, principalmente a de que suas observações críticas não são levadas em consideração, forjando um consenso científico inexistente.

Tateando a sombra disforme

Em Aquecimento Global: uma visão crítica, Luiz Carlos Molion, do Instituto de Ciências Atmosféricas da Universidade Federal de Alagoas, um dos grandes especialistas brasileiros, apresenta grande parte dos argumentos contra a tese do aquecimento global provocado pela atividade humana (o ensaio de Molion foi publicado no livro Aquecimento Global: frias contendas científicas, organizado por José E. da Veiga. São Paulo, Senac, 2008).

A crítica sobre a pretensa robustez dos modelos climáticos é, talvez, a de maior ressonância, sendo reconhecida inclusive no quarto relatório do IPCC. Os modelos matemáticos são, desde meados do século 20, as “principais ferramentas utilizadas não só para a compreensão e atribuição das causas das variações climáticas passadas, mas, sobretudo, para as projeções futuras” (Sônia M. B. de Oliveira. Base científica para a compreensão do aquecimento global. In Veiga, 2008). São “programas de computador que utilizam equações ou expressões matemáticas para representar os processos físicos diretos e os de realimentação e/ou interação (feedback) entre os diversos componentes do sistema terra-oceano-atmosfera” (Molion, 2008).

Até recentemente esses modelos abrangiam apenas informações referentes a áreas superiores a 250 km, e os processos físicos ocorridos em escalas espaciais inferiores eram resolvidos de uma forma particular: na linguagem técnica, eles precisam ser “parametrizados”. Isto é, elaborados a partir de estimativas, e não de observações. Com a participação de alguma intuição do cientista que criou o modelo (Molion, 2008).

Modelos que deformam

As duas principais conclusões que resumem a hipótese do aquecimento global no Sumário para Formuladores de Políticas do Relatório do Grupo de Trabalho 1, do IPCC, são baseadas principalmente em resultados obtidos com modelos desse tipo. Elas afirmam que:

1) “A maior parte do aumento observado na média global de temperatura desde meados do século 20 é muito provavelmente devido ao aumento observado nas concentrações de gases de efeito estufa antropogênicos” (IPCC (a), 2007, p. 10 – grifado no texto original). Antropogênicos, aqui, significa que resultam da atividade humana.

2) “Emissões contínuas de gases do efeito estufa nos níveis atuais ou maiores poderão causar um aquecimento adicional e induzir várias mudanças no sistema climático global durante o século 21, as quais, muito provavelmente, serão maiores do que aquelas observadas durante o século 20” (IPCC. Summary for Policemakers. In: Climate Change 2007: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Fourth Assessment Report, 2007, p. 13.

Os modelos nos quais elas se baseiam, contudo, apresentam muitos problemas. O próprio IPCC, em seu relatório de 2007, reconhece que eles têm “erros significativos”. Um dos exemplos citados são as deficiências na simulação do El Niño. “A principal fonte da maioria desses erros”, confirma o relatório, decorre do fato de que “vários processos de pequena escala não podem ser representados explicitamente nos modelos”. Isso resulta, reconhece o IPCC, de “limitações na capacidade da computação” e “das limitações do conhecimento científico”.

O relatório cita “incertezas significativas associadas, em particular, com a representação das nuvens, e como elas respondem à mudança climática” (Climate Models and Their Evaluation (Chapter 8). In Climate Change 2007: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Fourth Assessment Report, 2007, p 600.

Sônia Barros de Oliveira, do Instituto de Geociências da USP, em artigo em que defende a tese do IPCC, dá uma idéia da dimensão dos erros a que a modelagem está sujeita. As nuvens cobrem em média 60% da superfície terrestre, e tem um efeito significativo no albedo, sendo responsáveis por dois terços dele.

O albedo é a reflexão da radiação solar pela Terra, de volta ao espaço e influi na temperatura do planeta. Uma diminuição de 1% do albedo provocaria o aumento de 1°C na temperatura – isto é, apenas esta resposta das nuvens provocaria uma elevação na temperatura equivalente ao aumento previsto pelo IPCC caso a concentração de CO2 na atmosfera fosse duplicada (Oliveira, 2008, pag. 47-48)

As nuvens, como se vê, têm um papel determinante. Mas, como elas são muito diversas e dinâmicas, os modelos climáticos ainda não conseguem simular seu comportamento, explica Molion. Sabe-se que a presença de nuvens estratiformes (forma de camadas horizontais), do tipo cirrus, aquelas que ficam mais altas, contribuem para o aumento da temperatura global. Por outro lado, nuvens baixas (tipo “estrato”), mais espessas, tendem a baixar a temperatura, pois aumentam o albedo planetário.

A questão que os céticos colocam é: como se pode atribuir ao CO2 um papel tão importante nas alterações do sistema climático quando ainda não se conhece a contribuição de processos decisivos na formação do clima, como a cobertura de nuvens?
O argumento mais forte para atribuir ao CO2 papel tão decisivo no aquecimento global parte das observações do aumento de sua concentração na atmosfera desde 1958 (figura1). As medidas mostram que a concentração do CO2 aumentou de 315 ppm em 1958 para 387 ppm em 2009. (Ver Peter Tans, Trends in Atmospheric Carbon Dioxide, NOAA/ESRL, 2010. Disponível em www.esrl.noaa.gov/gmd/ccgg/trends. Acessado em 26/08/2010).

A atual concentração de CO2 , de 390 partes por milhão (ppm), representa 0,039% do volume total da atmosfera. Isto é muito pouco quando comparado, por exemplo, com a quantidade de vapor d´água suspenso no ar, que é entre 26 a 102 vezes maior! Ele é responsável por 60% do efeito estufa em situações de céu aberto, sem nuvens (IPCC. Observations: Surface and Atmospheric Climate Change (Chapter 3). In Climate Change 2007: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Fourth Assessment Report, 2007, p. 271. Disponível em: http://www.ipcc.ch). Sua concentração na atmosfera é muito variável, e depende de muitos fatores mas, pode-se dizer que ele compõe entre 1% e 4% do volume total da atmosfera.

A concentração atual de CO2 na atmosfera significa que para cada 100 mil moléculas de ar, 39 são de CO2. O meteorologista Roy Spencer ressalta que isso é tão pouco que o CO2 “é incluído entre os chamados ‘gases traço’ da atmosfera”. Lembra ainda que, no ritmo atual, a humanidade adiciona uma molécula de CO2 para cada 100 mil moléculas de ar a cada cinco anos (Roy Spencer. Climate Confusion. New York, Encouter Books, 2009, pag.63).
Outra forma de quantificar a presença de CO2 na atmosfera é o cálculo da massa total de carbono, medida em bilhões de toneladas (Gt) por ano. Segundo o IPCC, é dos continentes que vem a maior parte: 129 Gt de carbono, enquanto os oceanos contribuem com 90 Gt. No total, são 219 Gt.

O IPCC calcula que a atividade humana contribua com sete Gt por ano (é pouco: cerca de 3% daquelas 219 Gt). O aumento da concentração de CO2 corresponde a algo em torno de quatro Gt de carbono em forma de CO2. Há, portanto, uma sobra três Gt de carbono, e não se sabe o que aconteceu com ela. Provavelmente foi incorporada aos vegetais, através da fotossíntese, e absorvida pelos oceanos. Isto permite concluir que nem todo o carbono emitido por atividades humanas permanece na atmosfera, mas é absorvido como um elemento fundamental para a perpetuação da vida. (IPCC 2007 Capítulo 7).

Isto é, o CO2 não é o vilão pintado pelos alarmistas do aquecimento global. Ele não é um gás poluente e não consta, por exemplo, das medições diárias relativas à qualidade do ar realizadas por órgãos como a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb). Além disso, segundo informações do Departamento Federal de Saúde do Canadá, em ambientes fechados, como escritórios, é comum que sua concentração média seja de 600 a 800 ppm, podendo chegar a 1000 ppm (três vezes maior do que a hoje existente na atmosfera), sem causar incômodos maiores do que a sensação de “ar viciado”.

Nem urso nem arbusto. Nuvens?

Mesmo os céticos concordam que o aumento da concentração de CO2 na atmosfera associado às atividades humanas é significativo. Um deles, Richard Lindzen do Centro para Meteorologia e Meteorologia Física do Massachussetts Institute for Technology (MIT), nos EUA, escreveu em 1990 ser “inteiramente legítimo nos perguntarmos se deveríamos nos preocupar sobre o aumento dos níveis de CO2 na atmosfera. […] Certamente estamos lidando com mudanças significativas do CO2”. (Richard S. Lindzen. Some Coolness Concerning Global Warming.
Bulletin American Meteorological Society, Vol. 17, No. 3, March 1990). Apesar disso, ele não vê motivo para a atual histeria envolvendo a redução de suas emissões.

Outro que tem preocupação semelhante é Roy Spencer que, num livro publicado em 2009, enfatiza “que o que nos torna céticos é a teoria de que todo (ou mesmo grande parte) do aquecimento global é causado pela humanidade, ou a crença de que nós conhecemos o sistema climático e o estado tecnológico futuro bem o suficiente para fazer previsões sobre o aquecimento global para os próximos cinquenta a cem anos” (Spencer, 2009, p. 6).

A mesma opinião é expressa por cientistas como o especialista em nuvens William R. Cotton, da Universidade Estadual do Colorado (EUA). Ele não fala contra o aquecimento global mas pensa que a ciência não é “tão sólida quanto vários cientistas nos levam a acreditar”. O estudo da atuação dos gases do efeito estufa sobre o clima é robusto, diz ele. Mas continua precário em relação a vários pontos, “particularmente em relação ao papel das nuvens”.

Outro, nessa linha, é seu colega Roger Pielke, também da Universidade do Estado do Colorado. Para ele, os modelos climáticos podem ajudar a melhorar nossa compreensão sobre o funcionamento do sistema, mas lembra a restrição feita por um dos principais autores do quarto relatório do IPCC, Kevin Trenberth, dirigente do National Center for Atmospheric Research (EUA) e especialista em modelos climáticos: “O IPCC não faz previsões. Nenhum dos modelos usados pelo IPCC funciona a partir de situações observadas, e nenhuma das situações climáticas usadas nos modelos correspondem, nem remotamente, ao clima corrente observado”.

Outro crédulo que relativiza a compreensão atual das causas do aquecimento global é Spencer Weart, do American Institute of Physics, especializado em história da geofísica moderna. Na versão virtual de seu livro The discovery of global warming (In http://www.aip.org/history/climate, June 2009) ele fez uma detalhada história da ciência do clima e assume que atualmente “não há prova de que os gases do efeito estufa sejam responsáveis pelo aquecimento observado no século 20. E também não se sabe, diz, “quanto aquecimento o aumento do CO2 na atmosfera vai causar no futuro”, embora pense que o efeito estufa precise ser estudado seriamente (Weart, 2009).

O debate mostra que existe muita incerteza no conhecimento das mudanças climáticas, e a base científica para as recomendações que o IPCC faz aos governos é frágil. A questão é séria pois a diminuição das emissões de CO2 pode significar prejuízos para a obtenção da energia necessária ao desenvolvimento para beneficiar grande parte da população.
Mas a ciência caminha e só com muito mais pesquisa se poderá dizer se a sombra disforme é um urso ou um arbusto.

Verônica é bióloga e jornalista científica.